Roberta*, 25, namorava há dois anos quando foi forçada pelo ex a manter relações sexuais. “Lembro de ter dito com todas as letras que não estava a fim”, conta. Ele ignorou. “Logo depois, corri para o banheiro e disparei a chorar. Cheguei a pensar que era minha obrigação de namorada não recusar qualquer investida do tipo. ” Roberta foi violentada, mas só descobriu depois terminar o relacionamento. “Foi um estupro, e me rendeu uma grave crise depressiva.”
(UOL, 17/08/2017 – acesse no site de origem)
Fernanda*, 26, tinha 21 anos quando conheceu o ex. Dois anos depois, estavam morando juntos. A rotina sob o mesmo teto veio acompanhada de inúmeros abusos sexuais. “Ele insistia até quando eu negava. Em um dos episódios, usei a força física para tentar detê-lo”. Não adiantou. “Cansada de resistir, deixei que terminasse. Chorei o resto na noite”, diz. Fernanda só se reconheceu como vítima de um relacionamento abusivo depois de ler relatos parecidos com o seu. “Aqueles estupros me geraram crises de pânico. Quando o horário de ele chegar em casa se aproximava, eu ficava apavorada com o que estava por vir.”
Há uma semana, um relato de uma mulher vítima do próprio marido, comentado pela psicanalista e escritora Regina Navarro Lins, mostrou mais um cenário bárbaro: a dependência financeira como prisão em um relacionamento marcado pela violência sexual. E essas três histórias reforçam estatísticas.
Segundo o balanço do Ligue 180 de 2016, 65,91% dos casos de violência contra a mulher foram cometidos por homens com quem a vítima tem ou teve algum vínculo afetivo. De acordo com o relatório “Estupro no Brasil, Uma Radiografia Segundo Dados da Saúde”, divulgado pelo Ipea em 2014, 9,3% do abuso sexual sofrido por mulheres adultas são praticados pelo cônjuge e 1,6% pelo namorado.
Para Silvia Chakian, promotora de justiça e coordenadora do Grupo Especial de Enfrentamento à Violência Contra a Mulher (GEVID), de São Paulo, o problema do chamado estupro marital ainda reside no senso comum de que “as mulheres têm o dever de servir aos homens sexualmente”. Apesar de inaceitável, isso foi reforçado pela lei até 2003, quando o código penal brasileiro tratava como “débito conjugal” a recusa feminina na hora do sexo. E isso bastava para que um homem pedisse separação por justa causa.
“É absurdo que isso ainda habite o pensamento popular. Uma relação afetiva não é um cheque em branco para que um parceiro pratique todo e qualquer ato sexual com a companheira. Se não há consentimento, não existe outro nome que não seja estupro.”
Não é fácil se reconhecer como vítima
Periodicamente, a promotora realiza, em São Paulo, reuniões com vítimas de violência doméstica em parceria com o Projeto Acolher. “Sempre começo minha apresentação questionando se alguma delas –costumam ser umas 50– já foram estupradas. Ninguém levanta a mão”, conta. “Mas quando explico que estupro é qualquer ato sexual praticado sem o consentimento, seja mediante o uso da força ou numa situação onde é impossível resistir, muitas se manifestam afirmativamente. Isso é muito significativo.”
A palavra estupro ainda é estigmatizada, principalmente, quando é tratada no âmbito das relações afetivas. “É muito difícil para uma mulher admitir que foi violentada por um companheiro da vida toda, pai dos filhos, que tem boa reputação social, é trabalhador”, conta.
Mas não é só isso. Alice Bianchini, da Comissão da Mulher Advogada da OAB Federal e autora do livro “Lei Maria da Penha” (ed. Saraiva), acrescenta que, normalmente, a violência sexual vem acompanhada de outros tipos de abuso, como o psicológico. Não é raro ouvir relatos de vítimas que foram moral e intelectualmente diminuídas pelos namorados ou maridos. “Por isso, muitas chegam a acreditar que são culpadas pelo ocorrido”, explica.
Não à toa, muitas mulheres apresentam quadros de síndrome do pânico, isolamento social, depressão, distúrbios alimentares, reações suicidas, envolvimento com drogas e distúrbios do sono.
Essa realidade impacta diretamente no baixo número de denúncias. “Estamos falando de uma violência que acontece dentro de casa, na ausência de testemunhas e que ainda é questionada socialmente”, acrescenta Silvia. Isso é o bastante para que a maioria das vítimas seja desacreditada e silenciada em meio a um processo extremamente doloroso.
Por que muitas não denunciam?
Além de ter sua palavra colocada à prova, as vítimas se mantêm no relacionamento abusivo por uma série de questões. De acordo com um levantamento feito pelo DataSenado 2017 com mulheres que já foram violentadas pelo próprio marido, a lista de barreiras é longa: medo do agressor, preocupação com a criação dos filhos, dependência financeira, impunidade, vergonha, a crença de que será a última vez e o desconhecimento de seus direitos. “Mas é importante que elas não silenciem e que os agressores sejam punidos”, diz a promotora.
Para isso existe a Lei Maria da Penha, criada há onze anos. Ela se aplica a diversas formas de violência doméstica, que inclui a sexual, justificada no artigo 7º como “qualquer conduta que a constranja [a vítima] a presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada, mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força; que a induza a comercializar ou a utilizar, de qualquer modo, a sua sexualidade, que a impeça de usar qualquer método contraceptivo ou que a force ao matrimônio, à gravidez, ao aborto ou à prostituição, mediante coação, chantagem, suborno ou manipulação; ou que limite ou anule o exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos”.
Além da punição de 6 a 11 anos de reclusão ao agressor, a lei garante ainda instrumentos de proteção à vítima, conhecidos como medidas protetivas de urgência. Elas exigem o afastamento do agressor do lar e oferecem encaminhamento da mulher e filhos a um programa de proteção e acolhimento do governo.
“Não existe consentimento presumido”, acrescenta Silvia. “É crime se a mulher se sentiu constrangida e não manifestou afirmativamente o seu ‘sim’ e a intenção de manter qualquer ato sexual [da manipulação genital à penetração].”
A denúncia pode ser feita de diversas maneiras. A vítima pode recorrer ao Ligue 180, à Delegacia de Defesa da Mulher, às Promotorias de Justiça e aos Centros de Referência de Atendimento à Mulher em Situação de Violência.
Daniela Carasco