Há duas semanas as redes sociais foram inundadas com a notícia de que um homem que havia ejaculado em uma mulher no transporte público teria sido preso por crime de estupro e o magistrado da audiência de custódia judicial entendeu o comportamento de se masturbar em local público, e em seguida, ejacular em uma mulher é a contravenção penal de importunação ofensiva ao pudor, artigo 61 da Lei de Contravenções Penais e não o crime de estupro, artigo 213 do Código Penal, o que causou grande repercussão negativa na opinião pública.
(ConJur, 12/09/2017 – acesse no site de origem)
Será mesmo que a Lei 12.015/2009, que reformulou os crimes contra a dignidade sexual da pessoa não teria previsto um comportamento que tutelasse a dignidade da sexualidade no contexto ocorrido no ônibus? Ou a decisão do magistrado teria incorrido em mais um reflexo da cultura machista de menor proteção das vítimas de gênero feminino?
Não olvidemos, por oportuno, que de forma recorrente somos obrigados a nos deparar com os frutos desta cultura banalizadora da dignidade sexual feminina, que se opera em diversos níveis sociais, como ocorreu quando um promotor de justiça que afirmou a uma vítima menor de idade, abusada sexualmente pelo pai, de que se ele, promotor de justiça, pudesse pediria a prisão dela[1], por ser a real culpada e não vítima.
Já foi noticiado, também, a prisão de um analista de sistemas e residente em condomínio de alto padrão, por armazenamento de imagens de pornografia infantil. Os indícios são de que ele cooptava crianças pela internet e as convencia ao lhe passar suas imagens em cenas pornográficas enquanto mantinha conversa, no caso, uma menina de 10 anos de idade[2].
Ainda, nesta toada, também foi preso um coronel da Polícia Militar, reformado, por abuso sexual de criança de 2 anos de idade, que foi entregue a ele, por uma mulher de 23 anos[3].
Como se pode perceber, a ausência de inibição das condutas do ejaculador e de tantos outros que aviltam a dignidade sexual de meninas e mulheres também desafiam o senso moral de qualquer inteligência mediana, ainda que provocados por questões que podem gravitar em torno de aspectos de saúde mental ou até cultural, retrata em verdade o Id e o superego de cada um. Em todos eles, o superego ou será constatado diminuto ou realmente o autoriza, sem nenhum senso de repulsa moral, produto não somente da cultura patriarcal, como também, fruto de um processamento cultural de que o Estado deva interferir na sexualidade sob o aspecto moral e religioso, e não no respeito à dignidade sexual da pessoa humana.
Esta carga culturalmente paternalista, consequentemente, machista fica clara quando o legislador, brasileiro, ao longo do tempo, elabora o conceito de “mulher honesta”, empregada desde as Ordenações Filipinas. No Livro V, das Ordenações Filipinas, advindo de D. Afonso IV, descrevia os delitos onde podemos encontrar expressões como “mulher honesta” e “viúva honesta”:
Na lei penal seguinte, o Código Criminal do Império de 1830, entre os “crimes contra a segurança da honra” havia o artigo 222 que tinha a seguinte redação: “ter cópula carnal por meio de violencia ou ameaças, com qualquer mulher honesta”, repetindo o termo o artigo 224: “Seduzir mulher honesta, menor dezasete anos, e ter com ella copula carnal.”, prevendo, ainda, no art. 225 isenção de pena em caso de casamento com as vítimas.[1]
Saindo do Império e caminhando para a República, o código seguinte, o Decreto 847 de 1890, editado pelo Chefe do Governo Provisório da República dos Estados Unidos do Brazil General Manoel Deodoro da Fonseca, Sob o “Título – Dos crimes contra a segurança da honra e honestidade das famílias e do ultraje público ao pudor”, inaugurava o “Capítulo I – Da violência carnal”, destacam-se o art. 266 que possuía como elementar do tipo a “depravação moral” e o art. 268, “estuprar mulher virgem ou não, mas honesta”. [2], seguindo assim até a consolidação das leis penais, Decreto 22.213 de 1932.
Por fim, o Código Penal de 1940 continuou a empregar a expressão “mulher honesta”, tendo sido repetido este termo no Decreto-Lei 1.004 de 1969, conhecido de Código Penal de 1969, projeto de Nelson Hungria, revogado ainda na vacatio, pela Lei 6.578/78, mantendo-se a vigência da elementar “mulher honesta” nos artigos 215 e 216, até sua supressão total pela Lei 11.106/05.
O presidente da Comissão Revisora do Anteprojeto do Código Penal de 1969, Nelson Hungria (Hungria e Lacerda, 1980, p. 150), lecionava que mulher “Desonesta é a mulher fácil, que se entrega a uns e outros, por interesse ou mera depravação (cum vel sine pecúnia accepta)”
Como se percebe, o objetivo da norma era tutelar à moral e não a dignidade da pessoa, seja que seio social pertencesse a mulher. Verifica-se maior o grau de interferência do Estado em uma política segregacionista, resultado de uma cultura pautava exclusivamente na conduta machista que o legislador representava, estabelecendo uma relação de dominação entre a moral que o poder dominante (patrimonialista) dita em detrimento da sexualidade de pessoas que não se adequavam à cultura social reinante, denotando a total ausência de proteção contra a violência sexual do gênero feminino, bem como de outras minorias, promovendo-se, consequentemente, uma cultura sexista, na qual concorre para a visão da mulher e da criança como algo a serviço do homem. Assim,
“(…) a oferta do corpo feminino para a realização dos desejos masculinos é vista com naturalidade e sua aceitação pelo homem é esperada, ainda que caiba à mulher o papel de se “preservar”. A “pureza” sexual feminina é mitificada, enquanto que o apetite sexual masculino é estimulado.”[4]
O legislador, após o relatório da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito sobre violência sexual, então, pela primeira vez em 2005 e 2009 se debruçou sobre os crimes sexuais sob a perspectiva adequada, qual seja a dignidade da pessoa humana e sua correspondente sexualidade.
Nesta feita, para a proteção do bem jurídico dignidade sexual, em especial, após as necessárias transformações trazidas pelas Leis 11.106/05 e Lei 12.015/09, ao Código Penal, salutar o questionamento: É necessário o contato físico do agente na vítima para a violação de dignidade sexual? Seria o contato físico aquele tradicionalmente albergado pela cultura patriarcal de 1940? Não às duas perguntas.
A título de exemplo, alguns comportamentos tidos como atos de convencimento para satisfação lasciva, tipicamente característicos de atos preparatórios para a prática de atos libidinosos com um adulto, não enseja infração penal, porém é previsto como crime, quando praticado contra criança, conforme art. 241-D da Lei 8069/90. Outro exemplo é o art. 218-A, do CP, que pune a prática de qualquer ato libidinoso na presença de menor de 14 anos, para satisfazer lascívia própria ou de outrem. Em nenhum desses dois casos, para se tutelar a dignidade do desenvolvimento da sexualidade é necessário o contato físico, portanto, hodiernamente, o conceito de proteção àquele bem jurídico, não pode mais ser tratado como já fora pelas normas antigas à 2005 e 2009.
Isto significa dizer, o legislador pode graduar a ofensa ao bem jurídico dignidade sexual, sem que isso signifique contato físico seja com ou sem intermédio da violência.
Necessário contextualizarmos a abrangência da elementar “ato libidinoso”, como elementar de diversos crimes contra a dignidade sexual. Segundo a doutrina (Bittencourt, 2012, vol 4, p. 94):
“Ato libidinoso, por fim, é todo ato carnal que, movido pela concupiscência sexual, apresenta-se objetivamente capaz de produzir a excitação e o prazer sexual, no sentido mais amplo, incluindo, logicamente, a conjunção carnal. São exemplos de atos libidinosos, diversos da conjunção carnal, a fellatio in ore, o lesbianismo, o cunnilingus, o pennilingus, o annilingus, a sodomia etc.”
Delmanto (2002, p. 114), além do ato libidinoso, explicita o entendimento, ainda majoritário, sobre a contemplação lasciva:
“Ato libidinoso é o ato lascivo, voluptuoso, que visa ao prazer sexual. (….), costuma-se considerar necessário que haja contato corporal no ato libidinoso. Quanto à contemplação lasciva, as opiniões se dividem: a. não configura (H. Fragoso, Lições de Direito Penal — Parte Especial, 1962, v. II, p. 498); b. configura (Magalhães Noronha, Direito Penal, 1995, v. III, p. 125). Entendemos mais acertada a primeira posição.”
Por fim, para não restar dúvidas, ao menos, quanto ao entendimento majoritário (Gonçalves, 2011, p. 515):
“Prevalece o entendimento de que a simples conduta de obrigar a vítima a tirar a roupa, sem obrigá-la à prática de qualquer ato sexual (contemplação lasciva), configura crime de constrangimento ilegal. Argumenta-se que o ato de ficar nu, por si só, não é ato libidinoso.”
Como se percebe pelas citações dos autores mencionados há certa inclinação da doutrina em entender como necessário o contato físico para a caracterização do ato libidinoso, inspiração, ainda, com base na legislação antiga.
No entanto, após o advento da Lei 12.015/09, em especial, após a tipificação do crime de estupro de vulnerável (art. 217-A, CP), percebemos nova inquinação da doutrina e da jurisprudência, adotando entendimento no sentido oposto, ou seja, de que se dispensa o contato físico para a caracterização do ato libidinoso.
Em decisão de agosto de 2016 da Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça, no RHC 70.976/MS (2016/0121838-5), ratificou o conceito utilizado em decisão denegatória de HC de acórdão do Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul (TJMS), entendendo que a contemplação lasciva configura o ato libidinoso constitutivo dos tipos dos artigos 213 e 217-A do Código Penal, sendo irrelevante, para a consumação dos delitos, que haja contato físico entre ofensor e ofendido, como ocorreu no caso concreto na qual uma criança foi forçada a se despir para a apreciação de terceiro.
Portanto, determinar, com ou não consentimento do menor de 14 anos, com emprego ou não de violência ou grave ameaça a se despir e ficar desnuda à frente de alguém para satisfação de sua lascívia é considerado um ato libidinoso, ficando dispensado contato físico para isso.
Assim também vem lecionando a doutrina, Masson (2014, p. 825) e Cunha (2016, p 460), ex vi:
“De acordo com a maioria da doutrina, não há necessidade de contato físico entre o autor e a vítima, cometendo o crime o agente que, para satisfazer a sua lascívia, ordena que a vítima explore seu próprio corpo (masturbando-se), somente para contemplação (tampouco há que se imaginar a vítima desnuda para a caracterização do crime- RT 429/380).”
Ainda complementa Rogério Greco, reportando-se ao escólio do professor Luiz Régis Prado, algumas das condutas que configuram ato libidinoso (Prado, apud, Greco, 2015, p. 601), como:
[…]a masturbação; os toques ou apalpadelas com significação sexual no corpo ou diretamente na região pudica (genitália, seios ou membros inferiores etc.) da vítima; a contemplação lasciva; os contatos voluptuosos, uso de objetos ou instrumentos corporais (dedo, mão), mecânicos ou artificiais, por via vaginal, anal ou bucal, entre outros.
Não obstante a uniformidade de entendimento doutrinário quanto a dispensa de contato físico do criminoso com a vítima, contudo, no crime de estupro, por exemplo, é necessário a subjugação da vítima, mediante violência ou grave ameaça, para que ela se masturbe, no intuito do agente satisfazer sua lascívia pela simples contemplação, face a elementar “praticar” “ato libidinoso”.
Verifica-se com as lições acima que o necessário é o “envolvimento corpóreo da vítima” no ato libidinoso, seja com o criminoso, seja nela mesma, com suas próprias mãos ou quaisquer outros recursos físicos. Será considerado ato libidinoso, por exemplo, a automasturbação, quando praticada por adulto na presença de menor de 14 anos (Gilaberte, p. 83), consoante os atuais posicionamentos doutrinários e decisão do STJ.
É importante ressaltar que o ato de se masturbar em transporte público configura o delito do art. 233 do Código Penal, por ser considerado um ato obsceno praticado em local público. Desta forma, se uma pessoa ao praticar este ato obsceno em local público e ejacular sem intenção em alguém, não poderá ser punido por aspergimento culposo, relevando-se verdadeiro exaurimento do próprio ato.
Contudo, quando alguém se masturba direcionando a ejaculação para a pessoa na qual se deseja sexualmente e a atinge com sémen, é plenamente possível se falar em envolvimento corpóreo da vítima, contudo, de inopino, equivalente a um elemento surpresa (Sannini, 2017), recurso esse que impede a livre manifestação da vítima, elementar que se adequa ao art. 215 do Código Penal, à semelhança do “golpe pelas costas”, que caracteriza a qualificadora prevista no art. 121, §2º. IV do CP.
Na redação antiga do art. 215 era exigido que a vítima fosse induzida, o que foi retirado com a redação atual resultando no verbo “ter”, que significa desfrutar, fruir, ou usufruir, “ato libidinoso com alguém”, “mediante fraude ou outro meio” que impeça a “livre manifestação da vítima”, não se confundindo esta interpretação analógica com qualquer outro recurso semelhante à fraude, sob pena de se transformar o acréscimo trazido em 2009 palavras inúteis. Para isso, bastaria manter a expressão “fraude” (Cabette, 2017).
Nos parece desnecessário buscar justificativas (i)morais para se punir alguém pela conduta de ejacular em outra pessoa, pois a dignidade sexual já se encontra devidamente tutelada, cuja correção deveria ser somente na cultural banalização da dignidade sexual feminina. Bastava o dispositivo fazer menção à “violação sexual”, retirando a expressão “mediante fraude”. Simples assim.