Às 18 horas, meia hora antes do evento, chegou, no Teatro Rival, a atriz Ruth Souza com um vestido de seda florido e um sorriso estampado no rosto. A noite de terça-feira (24/10) marcou a entrega do “Prêmio Dandara” para Ruth de Souza, que completa mais de 70 anos de carreira.
Iniciativa do mandato do deputado Flávio Serafini (PSOL-RJ), o prêmio é a maior honraria do Rio de Janeiro para mulheres negras. “Estou muito comovida com tanta gente me prestigiando. Valeu a pena todo o sofrimento e a dificuldade”, anunciou Ruth. Aos poucos, o Teatro foi tomado por amigos, familiares e artistas. Entre poesias e músicas, a homenagem abriu as coxias do tempo e da memória sobre a primeira atriz negra a se apresentar no Teatro Municipal, em 1945, com a peça “O Imperador Jones”, do Teatro Experimental do Negro (TEN) fundado por Abdias Nascimento.
“Escolhi uma profissão difícil, que foi regulamentada em 24 de maio de 1978. Antes não era considerado profissão. Sempre trabalhei e nunca parei. Outro milagre, porque o ator sempre para e eu não”, contou Ruth, que ganhou uma bolsa e passou um ano estudando na Universidade de Harvard e na Academia Nacional de Teatro Americano, nos Estados Unidos. Foram mais de 40 novelas, 33 filmes e dezenas de peças. Ruth foi a primeira protagonista negra da TV Brasileira, em “A Cabana do Pai Tomás” (1969). Também foi a primeira brasileira a concorrer ao Leão de Ouro, no Festival de Veneza, por sua atuação no filme Sinhá Moça (1953).
O deputado Flavio Serafini iniciou sua fala lembrando do falecimento de Wilson Prudente, que era procurador do Ministério Público do Trabalho e também foi relator da Comissão Nacional da Verdade sobre a Escravidão Negra no Brasil. Em seguida, a voz da cantora Fabíola Machado reverberou com a canção: “ninguém vai me sujeitar, não vou desesperar, não vou fugir. Ninguém vai me acorrentar, enquanto eu puder cantar”. Ruth de Souza iniciou a carreira em um tempo que a teledramaturgia era ainda mais fechada. “Homenagear Ruth de Souza hoje significa homenagear todas as mulheres negras do Rio de Janeiro e do Brasil”, afirmou Serafini.
O premiado cineasta Joel Zito Araújo destacou que seus dois filmes mais premiados foram com participação de Ruth. “Eu me lembro de uma história durante a gravação de um filme e o roteiro estava com bifões [longos textos] de outros atores e ela chegou com tudo memorizado, impressionando a todos”, recordou. Joel Zito dirigiu o documentário “A Negação do Brasil – negro nas telenovelas”, a partir de um levantamento da participação de atores e atrizes negros em 174 novelas produzidas entre 64 e 97, pela Globo e Tupi. Durante a pesquisa para o documentário, foi demonstrado que em 75% dos papéis interpretados por atores negros, suas personagens estavam em posições de submissão, reforçando estereótipos de escravidão e servidão.
Doutor em História Social e autor do livro “Uma Estrela Negra no Teatro Brasileiro: Relações Raciais e de Gênero nas Memórias de Ruth de Souza”, Júlio Campos fez um recorte das relações sociais no Brasil. “Eu quis demonstrar, empiricamente, a existência do racismo no Brasil. Quando os críticos diziam que Ruth não tinha capacidade, ela foi, estudou nos EUA e na volta concorreu a um prêmio de melhor atriz no Festival de Veneza. A experiência de Ruth mostra as relações no Brasil, que são marcadas por gênero e raça. Os palcos e a dramaturgia no país são pontos de observação da racialização”, afirmou.
“Dizem que eu abri o caminho para o enfrentamento dos estereótipos. Minha mãe me ensinou que não deveria ter complexo, porque diziam ‘Você não pode ser atriz, porque você é negra’ e ela me disse que as portas se abririam se eu tivesse educação, postura e comportamento”, garantiu Ruth. A atriz Léa Carvalho reforçou a importância da artista para as novas gerações e a sociedade brasileira. “Uma atriz do quilate de Ruth com delicadeza de trato, finura de gesto e postura é exemplo para todas nós, mulheres negras. Você é minha referência, não apenas para atrizes negras, como também para todas as pessoas. E esse é um trabalho político, sim e todas nós, atrizes negras, fazemos nosso trabalho conquistando espaço. As pessoas que vêm hoje dependem do nosso trabalho”, observou Léa. O curador da exposição “Pérola Negra: Ruth de Souza”, Breno Lira reforçou que ela abriu as portas e as janelas para várias gerações de atrizes. “Com olhar de majestade e força, Ruth me ensinou muito sobre TV”, rememorou.
A jornalista Luciana Barreto contou que, há alguns anos, perguntaram quem era a sua referência. “E não era uma jornalista. Era uma atriz negra, Ruth de Souza, mulher altiva que não conhece a resignação, não tem medo de bater o pé na porta e reclamar o tempo inteiro que ninguém pode dizer que você não pode entrar num espaço. Nós, mulheres negras, representamos 25% da população brasileira e estamos no chão da pirâmide”, declarou. A integrante do Fórum Estadual de Mulheres Negras, Luciene Lacerda dialogou com a importância da representatividade, afirmando: “Representatividade importa para reivindicarmos um lugar que é e sempre foi nosso. Se uma avança, puxa a outra. Ruth foi aquela que puxou várias outras na luta cotidiana”.
Um dos momentos marcantes foi a leitura de um poema escolhido e escrito por Conceição Evaristo e lido pela advogada e diretora do Coletivo Justiça Negra Luiz Gama, Marta Pinheiro:
“E só,
só ela, a mulher,
alisou as rugas dos dias
e sapiente adivinhou:
não, o tempo não fugiu entre os dedos,
ele se guardou de uma mulher a outra…”, por Conceição Evaristo.
E todas as mulheres negras, reunidas no Teatro Rival, guardaram o tempo de uma mulher a outra.
Camila Marins é jornalista e mulher negra, fez a cobertura pelo jornal Brasil de Fato