A colunista Stephanie Ribeiro reflete como as emissoras de TV brasileira representam os negros, em personagens que são pobres, sofrem e estão presos a trama única que é enfrentar o racismo
(Marie Claire, 07/11/2017 – acesse no site de origem)
Confesso que adoro novelas, mesmo que meus amigos mais “conceituais” abusem da fala: “Desliga a TV”. Eu realmente acho importante me inteirar do que vem sendo veiculado no meio de comunicação que atinge a maior parte dos brasileiros, e adoro perceber como existe uma influência da internet na programação dos canais. Sendo assim, não acho que a Rede Globo, a maior emissora do País, que se gaba de atingir mais de 100 milhões de pessoas por dia, tenha uma novela teen em que se aborda racismo diariamente, simplesmente porque eles são legais e preocupados com essa questão. Acredito que a pauta racial no Brasil e no mundo ganhou visibilidade com as redes sociais, e ficar fora disso seria perder um filão enorme de público – e esse sim é o motivo.
Entretanto, mesmo que a pauta racial pareça em alta, a forma como ela vem sendo abordada me soa um tanto quanto mais do mesmo, e isso provavelmente se dá pela ausência de pessoas negras com consciência racial com poder final de decisão. Se a nova Malhação conta com discursos mais enfáticos sobre o racismo ser uma opressão enfrentada por negros, evidentemente isso tem a ver com o fato de uma de suas roteiristas ser uma mulher negra que está no radar dos debates raciais e de gênero – dois fatos que parecem detalhes, mas que mudam toda a forma de abordar esses assuntos. Tanto é assim que, em 2016, a Rede Globo estreou sua primeira Malhação com uma protagonista negra onde existia falas antiracismo, porém o final da novelinha foi Joana (personagem de Aline Dias) e sua meia-irmã racista casando juntas superando a “rivalidade”, como se o racismo acabasse com véu e grinalda.
Preguiça. Racismo é violência, cometeu racismo e está arrependido? Vá para uma delegacia, faça denuncia por crime de racismo ou injúria racial e lide com as consequências do seu crime. E isso serve para violência de gênero também, pensando no personagem Gael, da novela Outro Lado do Paraíso e no seu provável arrependimento. Arrependimento bom, não é só o do choro e do pedido do perdão. É aquele que a pessoa pega seu corpinho e suas lágrimas, vai para a delegacia e se autodenuncia. Violência contra mulher é crime. Racismo é crime. E precisam ser tratados como tal.
Enfim, voltando para a Malhação de 2016: logo que foi anunciado que teríamos a primeira protagonista negra, ficamos sabendo que ela também seria faxineira. Nas minhas redes sociais, surgiu um movimento de negação a essa narrativa e boicote vindo de negros. Vale lembrar que, em 2014, quando a série Sexo e as Negas foi anunciada, fizemos a mesma coisa, e me incluo no grupo de pessoas que negou totalmente essa narrativa que colocava a mulher negra num lugar de subalternidade profissional e sexual. Estranhamento, mesmo que a série tenha sido baseada em Sex an the City, no seriado da Globo não víamos escritoras, advogadas, produtoras, donas de casa ricas, mas, sim, mulheres negras pobres ligadas a trabalhos subalternos, numa narrativa que o racismo era usado para piadas irresponsáveis. Num dos episódios que assisti, uma personagem, após sofrer retaliações racistas de um segurança, transava com ele no fim do episódio. Oi?
Sobre o excesso de mulheres negras como faxineiras, empregadas, babás, não teríamos problema nenhum nessa representação, caso ela não fosse a única que as emissoras de TV fazem de nós. E sabemos muito bem que Sexo e as Negas teve uma audiência muito baixa, e que uma série como Mister Brau tem por sinal uma audiência tão boa e surpreendente que continua sendo renovada. Um exemplo que o protagonismo negro precisa ser revisto nessa “inclusão” das nossas pautas, não só para que haja boas audiências, mas para que haja discursos com responsabilidade social.
Na Malhação, a protagonista Joana era pobre, não tinha completado os estudos, era filha de mãe solteira que já tinha morrido e começou a novela como faxineira. O que a Globo não esperava, e talvez nem mesmo os ativistas negros, era que o público da novela que tem entre 15 e 17 anos começaria, ele próprio, a reclamar sobre a posição de Joana na narrativa. Os jovens comentaram na página do Facebook de Malhação que odiavam ver a Joana com aquele cabelo preso e uniforme, porque ela soava muito submissa e, isso, em 2016, não fazia mais sentido para uma juventude que liga um YouTube e um Netflix e se depara com mulheres negras pautando o que é estética, o que é empoderamento e o rumo de suas vidas e carreiras. Desculpe, mas era ridículo pressupor que a juventude quer uma narrativa estilo Maria do Bairro com uma menina negra em 2016, mesmo ano em que os negros jovens brasileiros estavam fazendo o capital girar entre nós com seu tombamento.
Muitos de nós somos filhos de mulheres que limparam privadas e fizeram muita faxina, exatamente para gente não ter que limpar privada e fazer faxina. Então, por favor, as novelas deveriam nos poupar de tentar indicar a faxina como sendo nosso lugar único. Na própria Malhação, por mais que a tal Joana tenha mudado de lugar social, ela continuou sendo a garota negra num mundo branco – e isso é norma em novelas brasileiras. Os roteiristas, em geral, não se dão conta de que suas personagens negras são severamente isoladas do contato com outros negros. Negros não têm pais negros, geralmente as personagens são filhas de mães solteiras que morrem ou aparecem muito pouco. Lembra da Preta, interpretada por Tais Araujo, em Da Cor do Pecado? A mãe morre logo no início da trama.
Em folhetins brasileiros, vejo negras sendo retratadas como fortes de um jeito desumano, uma força que tem que responder sempre à violência racista, de gênero e classe a que são submetidas. Ao mesmo tempo que são totalmente solitárias a espera de um homem branco, que funciona como um príncipe perfeito, imune ao racismo e pronto para lutar pelo amor do casal, salvando a amada da violência de gênero, raça e classe. Eu realmente fico muito, muito incomodada como todas as personagens que citei aqui, salvo a Marilda, todas as personagens negras se envolvem com homens brancos que estavam em situação privilegiada financeiramente e eram tidos como príncipes.
A Preta (Tais Araujo) e o Paco (Reynaldo Gianecchini) se apaixonam, o Paco é rico e o pai dele acha que Preta é uma interesseira por ser negra e pobre, ela sofre muito na mão de Bárbara (Giovanna Antonelli), a ex-namorada de Paco, uma mulher racista. No fim, Paco e Preta terminam juntos, vencendo o racismo do pai e as desigualdades, esse basicamente é o roteiro de Da Cor do Pecado.
As personagens negras também não têm amigos negros, elas, inclusive, muitas vezes são apenas as amigas negras que servem como apoio para o sofrimento da amiga branca, exemplo recente disso é a personagem de Dandara Mariana como Marilda, a amiga da Ritinha (Isis Valverde) em A Força do Querer. As personagens de mulheres negras também são geralmente mãe solteiras, só lembrar de Camila Pitanga como a Regina em Babilônia. Existe problema nisso? Não. Eu mesma sou filha de mãe solteira. Entretanto, quando assisto uma série como Black-Ish, que vem se tornando um sucesso de público nos EUA, vejo uma família negra com mãe médica e pai publicitário, discutindo temas da vida real como depressão pós-parto, assim como em Insecure, em que há mulheres negras com problemas humanos, e não apenas sendo vítimas de racismo dos parentes brancos do namorado. Parece que sofrer na mão do sogro, da sogra, do meio-irmão racistas é o nosso único drama em novelas.
Em Malhação (2016), 12 anos depois de Da Cor do Pecado, Joana é a faxineira que vai trabalhar numa academia e, lá, se apaixona por um jogador de vôlei (Gabriel), que faz sucesso. Joana então começa a sofrer humilhações da dona da academia e também namorada desse garoto, outra Bárbara. E ai Joana se apaixona por Giovane, irmão do Gabriel, e passa a sofrer racismo da sogra, que não aceita o filho com uma negra ex-faxineira. O enredo de novela teen, agora, ganhou um novo status quando chegou na novela O Outro Lado do Paraíso, em que Erika Januza interpreta Raquel, uma empregada doméstica quilombola, que começa a namorar Bruno (Caio Padua). Por conta desse namoro, ela passa a sofrer um racismo ainda mais violento da “patroa” e agora sogra, Nádia.
Quando vi as chamadas dessa novela, pensei: “Nossa mais uma vez isso?”
E aí, comentando com alguns amigos atores, me falaram que essa novela vai ter uma “reviravolta” e que eu tinha que esperar. Infelizmente, esses meus amigos, e os roteiristas, produtores, canais de televisão, esqueceram que nós pessoas negras estamos esperando já há mais de 300 anos depois da abolição por uma representação que não seja mais do mesmo. Cansamos do homem negro traficante/bandido/safado, do casal interracial que tem que superar o racismo e da negra empregada que sofre racismo da sogra(o) branca(o). Cansativo ter que esperar uma “reviravolta”, quando em 2017 a gente tem todo o embasamento e a possibilidade para começar uma novela colocando uma mulher negra em outro lugar, para fazer novelas protagonizadas por casais negros e para ver famílias negras que vivem unidas e plenas. Como seria se a A Grande Família fosse interpretada por atores negros? Mas os roteiristas parecem não conseguir escrever personagens negras que não sejam socialmente marginalizadas. Um exemplo disso é a personagem Leila, de Lucy Ramos, em A Força do Querer, que sumiu, pois ela só serviu de apoio dramático.
Duvido que se ela fosse uma faxineira, sofrendo o racismo da família, ela sumiria com a facilidade que sumiu por ser una arquiteta nas mãos de uma roteirista que, provavelmente, não sabe escrever sobre negras arquitetas com a mesma facilidade que o faz sobre negras pobres sofrendo racismo a espera de um homem branco para salvá-las. Afinal, em todas as novelas, o parceiro branco se destaca como alguém superior por namorar uma negra.
Cansativo como todos os roteiristas brasileiros são graduados em Casa-Grande e Senzala e adoram pressupor que a democracia racial mora no relacionamento interracial, em que o branco mostra para a sociedade seu “não-racismo” por ter um preto ao lado – este é assunto para o próximo texto. A mensagem que fica é a de que, talvez, as emissoras brasileiras estejam acostumadas em fazer preta pobre sofrendo, que já é hora de nós escrevermos nossos próprios roteiros. Já passou da hora… de roteiristas, diretores, dramaturgos negros atingirem mais de 100 milhões de pessoas.
Stephanie Ribeiro é escritora, arquiteta e não tem papas na língua. No #BlackGirlMagic ela fala sobre cultura, gênero, moda e relações sociais e raciais sob a perspectiva da mulher negra.