Quando o pai de Judith Gardiner morreu em 1963, sua mãe, uma advogada, tomou a direção do escritório do casal. Naquela época, pouquíssimas mulheres ocupavam essa posição, mas a mãe de Gardiner sempre conseguiu impor sua autoridade.
(BBC Brasil, 20/11/2017 – acesse no site de origem)
Ela aumentou a altura de sua mesa de trabalho para que ficasse posicionada um pouco acima dos visitantes homens e sempre garantiu que os almoços ou jantares de negócios já estivessem pagos por ela com antecedência. “Minha mãe bolou maneiras de se antecipar a várias pequenas manifestações diárias da dominação masculina”, diz Gardiner, uma professora de Inglês, Gênero e Estudos das Mulheres na Universidade de Illinois, Chicago. “Ela conseguia exercer autoridade e competência em uma situação em que isso não era necessariamente normal”.
O que teria acontecido, porém se a mãe de Gardiner de repente não precisasse mais fingir ser mais alta? E se as dinâmicas de gênero fossem abruptamente invertidas – se as mulheres se tornassem maiores e mais fortes que os homens, sem a ajuda de centenas de milhares de anos de evolução?
Obviamente, é algo pouco provável – mas pedir a especialistas para especular sobre isso pode elucidar como as dinâmicas de gênero estão se transformando no mundo real, bem como revelar as coisas que muitas pessoas não percebem sobre a relação entre os gêneros.
Vale a pena lembrar que, na maioria das espécies do planeta – de insetos até sapos e ostras -, a norma é que as fêmeas sejam maiores que os machos porque elas têm a tarefa de carregar centenas ou milhares de ovos dentro de seus corpos de uma vez só.
A maioria dos vertebrados terrestres, incluindo os humanos, são exceção a essa regra. As mulheres crescem até um certo tamanho e então entram no modo reprodutivo, investindo na produção de gordura em vez de produzir mais músculos e ossos. Os machos, enquanto isso, investiriam esforços evolutivos nos traços que lhes ajudariam na competição por essas fêmeas – tamanho e força, no caso dos humanos.
Por mais que as diferenças físicas entre os gêneros estejam diminuindo – mulheres estão se aproximando dos homens em algumas competições atléticas – ainda existem diferenças básicas, desenvolvidas ao longo de milênios. Os homens continuam, em média, maiores e mais fortes do que as mulheres, com 10kg de tecido muscular esquelético, 40% a mais de força na parte superior do corpo e 33% mais força muscular da parte inferior do corpo.
Se as mulheres ficassem mais fortes do que os homens, elas também teriam que se tornar mais largas, porque são necessários ossos maiores para apoiar músculos maiores (uma situação como na série da Netflix Jessica Jones, em que há uma força superhumana em um corpo pequeno, é biologicamente impossível).
Essas mudanças também seriam acompanhadas por um aumento de testosterona e outros hormônios. Se a sociedade aderisse apenas às leis da natureza, então isso provavelmente significaria uma mudança nos papéis sociais majoritariamente desempenhados hoje por mulheres e homens. “Nós teríamos uma sociedade matriarcal na qual as mulheres estão no comando e os homens cuidam das crianças”, diz Daphne Fairbairn, professora emérita da Universidade da Califórnia em Riverside.
Ao mesmo tempo, acrescenta ela, a tarefa da reprodução poderia ser mais difícil para elas. “Se essa mudança ocorresse através de um aumento na testosterona feminina, existiriam consequências negativas óbvias para o desenvolvimento das funções reprodutivas femininas”.
Uma força maior também resultaria em ramificações psicológicas, como as que os homens já experimentam, independentemente do uso dos músculos diariamente. Por exemplo, segundo um estudo liderado por Michael Bang Petersen, professor de ciência política da Universidade de Aarhus, homens mais fortes na parte superior do corpo têm uma tendência maior que homens mais fracos a favorecer políticas públicas que os beneficiem. Homens ricos e fortes, por exemplo, tendem a se opôr à redistribuição de dinheiro para aqueles em uma situação pior.
Petersen sugere que esses homens possam ainda ser influenciados por comportamentos ancestrais, segundo os quais pessoas mais fortes fisicamente precisavam de mais recursos. Homens maiores e mais fortes também tendem a favorecer hierarquias e são mais inclinados a competir, diz Petersen.
Nós podemos agradecer ao menos parcialmente à seleção natural por esses traços. Como diz Petersen, “homens não são mais violentos porque são fortes, mas são mais fortes porque eles precisaram ser mais violentos durante a história evolucionária, o que moldou a psicologia masculina de várias maneiras”.
Há um debate em aberto sobre até que ponto a natureza ou a criação influenciam aspectos como dominância e agressividade, mas não é impossível que, se as mulheres se tornassem mais fortes, elas experimentariam o aumento desses traços tradicionalmente masculinos.
Todas essas mudanças poderiam afetar as relações heterossexuais.
Farbairn afirma que algumas mulheres que sentem a necessidade de “emburrecer” para agradar homens inseguros poderiam não mais precisar recorrer a isso. Em alguns casos, esse cenário já está mudando. Sua filha de 30 e poucos anos, por exemplo, esteve em encontros desastrosos nos quais os homens claramente queriam inflar o próprio ego. Mas ela é capaz, ativa e tem um doutorado e “se recusa a fingir que não faz reformas na casa sozinha e corre 80 quilômetros com regularidade para que um cara a ache sexy”, diz Fairbairn.
Força é uma das únicas características em que os homens em média superam as habilidades das mulheres – mas se isso mudasse, seria mais um fator em que a identidade masculina e a masculinidade tradicional estariam sob desafio.
Nos últimos 50 anos, as mulheres se tornaram mais independentes e em vários casos superaram os homens em rendimentos, conquistas e sucesso. A tecnologia também está diminuindo as diferenças de gênero, abrindo áreas historicamente dominadas por homens às mulheres, como áreas industriais e o Exército, que agora podem contar com intelecto e refinamento manual em vez da força bruta do corpo para, por exemplo, construir carros ou lutar em conflitos.
Como resultado, alguns homens se apegam ao seu maior poder físico como uma justificativa de que “de alguma forma, homens são mais propensos a ter poder”, diz Jackson Katz, escritor, professor e presidente da MVP Strategies, uma empresa que oferece treinamento e educação sobre prevenção de violência de gênero. “Como as mulheres começaram a competir com homens em áreas que eles historicamente as excluíam, alguns homens se isolaram nesse mundo onde o tamanho físico e a força importam mais porque é uma área onde eles continuam a ter vantagens sobre as mulheres”.
Katz afirma que isso pode ajudar a explicar em parte a popularidade e o crescimento de esportes como futebol americano, boxe, MMA e outras competições físicas violentas. “Um homem pode não ser capaz de entender ou articular isso, mas o pensamento é ‘sim, uma mulher pode ganhar mais dinheiro que eu, minha chefe pode ser mulher, minha esposa pode ter um emprego melhor que o meu, mas nenhuma delas pode jogar futebol americano'”, diz Katz.
Por outro lado, se as mulheres fossem mais fortes, elas sofreriam menos abusos e violências físicas dos homens e Katz acredita que as taxas de estupro diminuiriam.
Porém, algumas estatísticas sugerem que pode ser errado concluir que uma força feminina superior seria necessariamente positiva. Entre 17% e 45% das lésbicas afirmam ter sofrido abuso físico de uma companheira e, nos casais heterossexuais, 19% dos homens dizem já ter sido atacados pela parceira ao menos uma vez, ainda que as mulheres sejam vítimas em uma escala muito maior. Então, enquanto o abuso doméstico masculino sobre feminino possivelmente diminuiria, os casos contrários poderiam aumentar.
Como desigualdades e discriminações de gênero no campo profissional seriam afetadas é algo menos claro. É verdade que traços masculinos foram associados com posições de poder há muito tempo – basta lembrar da ex-primeira-ministra britânica Margaret Thatcher treinando a fala com uma voz mais grave para soar mais autoritária, por exemplo, ou o aumento do uso de calças sociais entre as mulheres de negócios nos anos 1970 como uma maneira de buscar respeito e aceitação dos colegas homens. Se as mulheres não tivessem que usar moda, linguagem corporal e treinamento de voz para se masculinizar, então a discriminação de gênero poderia começar a diminuir, na visão de Fairbairn.
Já Gardiner não acredita que seria tão simples assim. Ela lembra que tamanho físico e força não são necessariamente fatores que sustentam desigualdades. “Os brancos não são maiores e mais fortes em média do que as pessoas negras, mas a supremacia branca conseguiu se manter sem nenhuma base física”.
Os argumentos para a dominação masculina no mercado de trabalho pode simplesmente se inverter. “Esses argumentos não são baseados em fatos, mas na supremacia masculina”, diz Gardiner. “Os que estão no poder sempre brigarão para continuar no poder usando tudo que puderem para isso”. Em outras palavras, mesmo com mais força, as mulheres ainda teriam que lutar para quebrar o teto de vidro em áreas dominadas por homens.
Algumas mulheres poderiam até preferir manter as coisas como estão. Como diz Katz, alguns dos oponentes mais ferozes do feminismo eram mulheres. Em vez de lutar contra o sistema, elas podem optar por adotar maneiras de usá-lo a seu favor e minimizar comportamentos sexistas dizendo que são apenas “papo de mictório”.
Os impactos desses movimentos em oposição – alguns a favor da igualdade, outros contra – são visíveis nas políticas atuais. Por um lado, nos Estados Unidos “você tem um cara evocando uma era em que as mulheres eram ornamentais e que foi eleito em parte por apelar para uma masculinidade obsoleta”, diz Katz, em referência ao presidente Donald Trump.
Por outro, diz Petersen, conforme as sociedades se tornaram mais complexas, democráticas e pacíficas, o uso de violência e agressão para manter o controle diminuíram. Isso contribuiu para um número crescente de líderes políticas mulheres ocupando posições centrais, como a chanceler alemã Angela Merkel.
Por mais que seja pura fantasia imaginar que as mulheres poderiam de repente ser fisicamente mais fortes que os homens, algumas das mudanças nesse cenário imaginário já estão acontecendo. Como diz Fairbairn, “eu prefiro que as mulheres simplesmente dominem o mundo como estamos fazendo agora”.
Rachel Nuwer