Diretora jurídica da ONG Artemis, Ilka Teodoro, diz que alerta de amigos devem ser sutis
(O Globo, 20/12/2017 – acesse no site de origem)
Menos visibilizada que a agressão física, a violência moral e psicológica tem a sua compreensão mais difícil tanto pela vítima, quanto pelo agressor. Mas, como afirma advogada Ilka Teodoro, diretora jurídica da ONG Artemis, sua ocorrência é passível das medidas protetivas previstas na Lei Maria da Penha e punições. Aos amigos e familiares, cabe o papel de amparar essa vítima e fazer alertas sutis.
O GLOBO – Com que recorrência as mulheres têm buscado medidas de proteção ou orientações em relação a abusos psicológicos? Elas têm feito mais denúncias quanto a esse tipo de abuso?
ILKA TEODORO – A violência física é uma parte visível e incontestável que costuma receber um enfrentamento do Poder Judiciário. Mas a violência psicológica, moral e patrimonial, geralmente, não recebe o mesmo enfrentamento. Sequer é reconhecida na maioria dos casos. Então, existe uma grande dificuldade do agressor se reconhecer como praticante desse tipo de violência e da vítima em se perceber em situação de violência. Até pouco tempo, castigos domésticos eram tolerados e naturalizados nas relações de família. Logo, é difícil as mulheres reconhecerem isso e buscar orientação. Por consequência, acaba havendo um número menor de notificações.
Qual o caminho para uma mulher compreender que está sofrendo esse tipo de abuso?
É um processo difícil. É necessário todo um processo de conscientização do que significa esse tipo de violência, quais são as suas características e compreender o que são as violências de gênero. Isso é complicado porque a violência de gênero tem um caráter de estrutura. É um componente da nossa sociedade. Por ser muito naturalizada, tomar consciência disso é um processo muito complexo e doloroso. Mas essa conscientização é o primeiro passo para identificar um relacionamento abusivo, buscar acolhimento e fazer a denúncia.
Quais os casos mais frequentes e comuns?
A violência psicológica é bem mais comum do que se imagina. Começa mais sutil, com chantagens e humilhações e vai evoluindo para xingamentos, alterações de voz e ameaças mais incisivas. Ter atenção a esses aspectos é muito importante porque a violência nos relacionamentos acontece, normalmente, dentro de ciclos, que se alternam entre períodos violentos e de reconciliação. Ao mesmo tempo, funcionam também numa espiral, sendo que último capítulo pode dessa escalada doméstica é o feminicídio. Então, é muito importante a compreensão da violência psicológica e moral, porque a mulher precisa tomar conhecimento de que, se ela não interrompe esse ciclo no começo, a tendência é que haja uma evolução para agressões mais graves.
Estes comportamentos aparecem frequentemente disfarçados de “ciúme” e “zelo”? Como diferenciar isso?
Sim. Muitas vezes, esse tipo de violência é confundido com o próprio amor e com excesso de cuidado. A psicóloga Valeska Zanello, de Brasília, trabalha com saúde mental e gênero e criou um conceito chamado dispositivo amoroso. Quando a mulher está vivendo esse dispositivo, ela confunde essa relação abusiva com uma relação de cuidado e proteção. Mas, geralmente, não é isso. É uma forma de controle, de subjugar e retirar a autonomia da mulher para que ela continue ali presa a um ciclo de violência.
Como a mulher pode entender que isso passou dos limites aceitáveis?
Tudo aquilo que interfira nos direitos dela como cidadã, assim como na autonomia, nas vontades e no controle sobre o seu corpo, pode ser identificado como uma tentativa de exercício de um poder e de uma violência psicológica ou moral. São exemplos todos as falas do tipo “essa roupa não está adequada”, “está igual a uma prostituta”, “não gosto de batom vermelho ou que pinte as unhas de vermelho”, “não pode ir a determinado lugar”, “não pode sair com determinadas companhias” ou “não pode estudar porque vai conhecer pessoas mais interessantes na faculdade “. Todos esses comportamentos não se confundem, de forma alguma, com cuidado ou zelo. São atitudes controladoras e que caracterizam, sim, violência psicológica.
Como as pessoas que estão à volta dessa mulher, como amigos e familiares, podem identificar que isso está acontecendo e como podem ajudar?
Geralmente, são os primeiros a perceberem, porque uma das estratégias do agressor é justamente afastar a mulher inserida neste ciclo de violência do convívio com os familiares e os amigos. Ele argumenta que as amizades não prestam e não são boas influências para a mulher ou que a família não gosta dele. Por outro lado, essa situação do dispositivo amoroso faz com que a mulher não perceba que a crítica da família está tentando protegê-la. Então, normalmente, ela associa isso a inveja ou um não querer que ela seja feliz. Por isso, essas pessoas devem ter muito cuidado e fazer alertas sutis, dando sinais para que ela se conscientize disso. Às vezes, apontar diretamente não faz com que ela enxergue isso.
O homem que comete abuso psicológico sobre a sua parceira sem chegar à agressão física pode ser preso ou punido de alguma forma?
O enfrentamento e a punição nos termos e limites da lei Maria da Penha vai acontecer. Quanto à possibilidade de prisão, terá que ser analisado caso a caso. Existe a tese da violência psicológica como lesão corporal. E do crime de indução ao suicídio. O caso terá que ser avaliado individualmente para verificar qual vai ser o enquadramento e a tipificação penal. Mas pode acontecer. Algumas medidas protetivas já possuem caráter punitivo. E o descumprimento de medida protetiva também é uma violação de lei.
Eduardo Vanini