Eles passam por cursos, sessões de terapia, debatem questões como machismo e são levados a se colocar no lugar da vítima
(O Globo, 27/12/2017 – acesse no site de origem)
Casado e pai de uma jovem de 20 anos, Pedro, de 40, repete algumas vezes que “nunca foi de sua índole desrespeitar as mulheres”. No meio do ano, no entanto, sacou do bolso da calça o celular que comprou três dias antes e fotografou por baixo do vestido de uma passageira, enquanto ela subia as escadas da estação de um metrô na Zona Leste de São Paulo. Levado para a delegacia, recebeu como pena passar por uma espécie de curso onde são debatidas questões como machismo e abusos. Ele diz que saiu de lá outro homem. O caso que envolve Pedro é um entre milhares que surgem em centros de tratamento para quem pratica assédio ou tem compulsão sexual, o que tem feito com que homens sejam obrigados ou busquem voluntariamente auxílio não só junto a organizações mantidas pelo governo ou centros religiosos, mas na esfera judicial.
Pelo menos um caso de assédio sexual em transporte público chega diariamente ao Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP). Para ajudar vítimas e evitar novos casos, juristas e especialistas na área da saúde mental afirmam que todos os envolvidos devem passar por tratamento. Após um homem ejacular duas vezes na mesma semana em mulheres dentro de um ônibus, na capital paulistana, em setembro, o TJSP e a Central de Penas e Medidas Alternativas (CPMA), da Secretaria de Administração Penitenciária (SAP), criaram um projeto voltado para episódios como o de Pedro.
Os acusados são encaminhados para uma reunião de dois dias, com oito horas de duração no total, e ali são convidados a se colocar no lugar da vítima. Pelo menos 30 homens já participaram das quatro reuniões que aconteceram desde outubro.
O costureiro Luiz, de 21 anos, também passou pelos encontros após ser acusado de passar a mão em uma mulher numa festa. Ele nega que tenha feito isso.
— Vivo em meio a mulheres e não faço essas coisas, mas serviu para ter mais cuidado. Hoje já não pego nem mais no cabelo delas — garante ele, para quem esse ato de paquera era “normal”.
Quando há casos mais graves de abuso sexual, envolvendo crianças, a Justiça paulistana e a prefeitura encaminham o menor, o acusado e a família ao Centro de Referência às Vítimas da Violência (CNRVV), do Instituto Sedes Sapientiae, na Zona Oeste. A equipe que atende os casos defende um estudo aprofundado no histórico dos acusados. O tema é delicado, no entanto, principalmente por ter crianças envolvidas, e há resistência entre profissionais no atendimento a essas pessoas.
O psicólogo Antônio Rivaldo Brasil de Lima frisa que a punição a agressores é essencial, mas apenas trancafiar não basta.
— Um advogado entrou em contato pedindo ajuda para um cliente que foi preso, acusado de pedofilia na internet. Ele tentou serviços particulares e públicos para tratamento, mas todos se recusaram a atendê-lo. É comum ouvirmos de profissionais que eles não têm estômago para situações como essa — afirma Lima.
Coordenadora do CNRVV, a psicóloga Rosemary Peres Miyaha conta o caso de Roberto, um adolescente com algumas acusações de abuso sexual. Desde muito novo, ele mantinha relações com um parente próximo, e passou a repetir o ato com outras crianças, como se isso fosse natural. Rosemary conta que só agora ele está entendendo a gravidade das ações:
— Quando você vê um ato como esse, considera uma bestialidade, mas, ao conhecer a história por trás, percebe a importância de se tratar casos assim — explica ela.
PAIS E PARENTES ENTRE OS QUE MAIS ABUSAM
Nos últimos três anos, o CNRVV recebeu 86 casos de abuso sexual. Dos autores de violência, 33% referem-se ao pai, 32% a outros parentes, 21% a pessoas fora do âmbito familiar, 12%, padrastos ou madrastas e 1,3%, irmãos.
O executivo Luiz, de 34 anos, procurou ajuda temendo cometer um crime contra o primogênito. “Estou sentindo atração sexual pelo meu filho de 2 anos. Vim para você afastar as chances de abuso”, disse ele, no consultório do terapeuta Márcio Ferrari.
— Esse buscou ajuda, mas muitos sequer admitem que estão com algum problema ou mesmo não sabem onde procurar — aponta.
Rômulo, de 39 anos, não se considera agressor, mas foi recentemente ao Ambulatório de Impulso Sexual Excessivo (Aisep), do Instituto de Psiquiatria (IPq), da USP, temendo entrar para a lista. Contou que foi abusado por um primo bem mais velho na infância e teve a primeira relação com um homem no início da adolescência, após ser abordado na rua. Já adulto, perdeu alguns casamentos e três empregos como administrador por causa de sua compulsão sexual. Garante que nunca se envolveu com menores ou abusou de alguém.
GRUPOS ANÔNIMOS PODEM SER UM CAMINHO
A psicoterapeuta Maria Luiza Santana do Amaral é categórica ao pontuar que não se pode associar a compulsão sexual ao assédio e ao abuso:
— São coisas diferentes. Entende-se por comportamento compulsivo a pessoa viver em sofrimento, que tem e causa prejuízos.
O antedimento no IPq é gratuito, e a idade média entre os pacientes é de 38 anos. De acordo com o coordenador do ambulatório, Marco Scanavino, geralmente são pessoas com boa escolaridade, mas têm histórico de violência sexual, abuso físico, negligência e bullying na infância ou adolescência.
Além dos exames clínicos para verificar se o paciente tem doenças sexualmente transmissíveis, ele participa de 16 sessões de psicoterapia em grupo, e mais oito para trabalhar a prevenção e a recaída, num total de oito meses de tratamento. Há ainda um grupo de manutenção, que pode ser frequentado por tempo indeterminado. São hoje cem casos, e há cerca de 30 esperando para entrar.
— A meta do tratamento não é abstinência, mas ampliar o controle sobre o comportamento — expõe Scanavino.
Os homens na média de 34 anos somam 95% dos casos atendidos no Ambulatório de Tratamento do Sexo Patológico, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). O psiquiatra Aderbal Vieira Júnior diz que recebe dois interessados novos por semana, mas afirma que ainda é pouco.
— Quando o paciente precisa de tratamento contra alcoolismo, por exemplo, sabe onde encontrar. Para esse tipo, tem poucos lugares disponíveis. Não há muita gente cuidando disso — aponta Vieira Júnior.
Morador de Santos, Nelson, de 54 anos, buscou ajuda no Dependentes de Amor e Sexo Anônimos (Dasa). O vendedor disse que as reuniões ajudaram a identificar o início de sua compulsão. Aos 7, ele foi abusado pelo namorado da prima e com 18 já estava se relacionando com várias pessoas, até contrair uma doença sexualmente transmissível. Ele reforça que sempre houve consentimento das parceiras, mas admite que, sem ajuda, o cenário pode, sim, se agravar:
— Nunca abusei de ninguém, mas a tendência é chegar lá se não houver tratamento.
Para a terapeuta Cecilia Frei, os grupos anônimos são grandes aliados durante tratamento:
— Eles ajudam o paciente a entender a motivação por trás do comportamento autodestrutivo, passando a ter empatia e criando intimidade consigo mesmo.
Luiza Souto