Eles são homens, mas, por muito tempo, a sociedade os enxergou como mulheres. Até fazer a transição de gênero, João Henrique, Victor, Gabriel e Cézar encaram o machismo que é parte do cotidiano da vida de uma mulher. Agora, reconhecidos como homens, estão do outro lado: não só deixaram de sentir o machismo na pele, como podem integrar as rodas masculinas.
(UOL, 30/01/2018 – acesse no site de origem)
Seja nas conversas masculinas ou andando na rua, a forma como o mundo os trata mudou completamente.
“Participar das rodas dos homens foi muito impactante para mim, no começo. Eu estava com amigos casados, que conheço a família toda, a mulher, e quando passa outra na rua, ele vira e fala: ‘Olha que rabo’. Eu não consigo me referir a uma mulher desse jeito”, diz Gabriel Lódi, 31, que fez a transição há dois anos.
Nenhuma mulher imagina o que homens falam
“Nenhuma mulher sabe como homem fala de mulher”, conta Gabriel. E ele só pode descobrir isso quando passou a fazer parte do clube masculino. “Eu trabalhava de motorista da Uber. Então, entravam no meu carro e se sentiam no direito de falar uma grosseria absurda para uma mulher bonita que passasse na rua”.
“É muito agressivo para mim, eu já estive do outro lado”
Mesmo tendo iniciado sua transição há quase dois anos, João Henrique Machado, 26, ainda fica incomodado com essas conversas.
Mas, para serem incluídos, reconhecidos como homens, eles contam que são cobrados de ter essa mesma postura. “A masculinidade rejeita tudo aquilo que é feminino. E muitas vezes você é cobrado a reforçar esses comportamentos”, conta Victor Namur, 26, que já viu muito homens trans ceder a isso e começar a agir de forma machista.
“Temos que provar que somos homens, então já vi muito homem trans objetificando mulher. É um mecanismo para se autoafirmarem. Mas, para mim, estamos aqui para construir uma nova masculinidade”.
O assédio acabou
Uma das mudanças mais gritantes na vida de todos eles é a questão do assédio. Quando as pessoas começaram a enxergar seus corpos como masculinos, o assédio acabou. “Eu me sinto completamente seguro, com liberdade de ir e vir, que não tinha antes”, diz Cézar Sant´anna, 29.
Nas ruas, no transporte, no trabalho, em todo lugar, eles deixaram de ter medo.
“Eu reparo muito isso quando pego um Uber ou táxi. É muito diferente quando você entra no carro como homem e como mulher, principalmente à noite. Eu me sentia totalmente vulnerável”, lembra Victor. Para ele, inclusive, as coisas inverteram: hoje se sente numa posição de poder, de assustar mulheres.
“Você passa a ser um potencial agressor. À noite, já vi muitas mulheres atravessarem a rua ao me ver”
Respeito ao corpo
Se o assédio é a forma mais gritante de como esses homens passaram a ter seus corpos respeitados, eles contam que, de maneiras bem mais sutis, isso aparece. No ônibus, por exemplo, Cézar diz que hoje ninguém nem sequer toca em seu corpo. “Os homens ficam de lado, mudam de lugar, tudo para não encostar em mim”.
Para Gabriel, a diferença aparece até no dia a dia. “Antes, como mulher, as pessoas se sentiam no direito de me tocar para falar comigo, pegar no ombro, colocar a mão no braço… Hoje, ninguém mais se sente autorizado”.
Para João Henrique, o racismo também ganhou novas formas: “Sinto que os homens me tratam com mais respeito nas ruas também porque sou negro. Eles pensam que negro é agressivo e têm mais medo”.
A mãe é criticada, o pai elogiado
Cézar tem ainda um detalhe a mais para comentar: ele é pai e, por quase 10 anos, foi visto como mãe. As diferenças de tratamento com a mãe solteira e o pai solteiro, para ele, são gritantes.
“Minha relação com minha filha nunca mudou em nada. Mas, hoje, as pessoas que me conhecem dizem: ‘Mas você cria sua filha sozinho? É um pai exemplar”
Se antes as críticas à forma como educava a menina eram recorrentes, hoje, o que mais recebe são elogios. Ele sente que, sendo homem, o simples fato de criar a filha já merece aplausos dos demais, pois a sociedade compreende que o pai seja ausente.
No trabalho
A trajetória desses homens se reflete também na vida profissional. Cézar lembra que, antes, em toda entrevista de emprego perguntavam se tinha filho e com quem deixava. “Perguntavam até o nome da escola, o endereço. Se acontecesse alguma coisa, quem ficaria com ela? Hoje, nunca perguntam. Eu tinha que me justificar por ter uma filha e não ter alguém ao meu lado”.
Ele acredita que isso já o fez ser desfavorecido em muitas buscas por trabalhos, mas, hoje, sua vida pessoal não faz diferença nesses momentos. “Nunca perguntam se sou casado”.
E quando o emprego rola, o homem também é mais respeitado, conta Cézar. “As pessoas param para me escutar. Isso me surpreende demais”.
Ainda pesa a transfobia e a homofobia
Nem tudo são flores. Os quatro contam que o respeito que recebem como homens só passou a valer quando seus corpos começaram a ser aceitos como masculinos. E quando alguém sabe que são trans, a transfobia surge.
Gabriel acredita que perdeu seu emprego na época em que iniciou a transição por preconceito.
João Henrique fala que, quando alguém descobre que ele é trans, começam a tratá-lo como mulher. “Quando meu documento não estava ratificado, começavam a ‘errar’ meu nome de propósito”, lembra.
Ele conta, também, que todo o respeito nas ruas some se ele coloca uma roupa mais ‘moderninha’, pois passa a ser visto como gay. Nesses momentos, volta o medo das agressões.
“O machismo, a misoginia, a transfobia, a homofobia… Parece que tudo se conecta, nunca um preconceito vem sozinho.”
Helena Bertho