Em entrevista ao HuffPost Brasil, ex-coordenadora do Transcidadania e uma das principais vozes do ativismo fala sobre o futuro da população trans no Brasil.
(HuffPost Brasil, 29/01/2018 – acesse no site de origem)
A cada 48 horas, uma pessoa transgênero é assassinada no Brasil. Em 2017, foram apurados 179 assassinatos de travestis ou transexuais. Em 94% dos casos, as vítimas são mulheres. Estes dados assombrosos são de um recente levantamento produzido pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra).
Para Symmy Larrat, 39, ex-coordenadora do projeto Transcidadania e coordenadora da Rede de Enfrentamento à Violência contra LGBT da Bahia, não há sombra de dúvidas de que a transfobia está por trás dessa realidade — e há diversos outros fatos que só fazem a vulnerabilidade da população transgênero se intensificar.
“O julgamento do Lula faz parte da agenda do golpe à democracia, do qual tem saído tudo de ruim. Quem financiou esse projeto foram os conservadores, para não falar palavras piores”, diz em entrevista ao HuffPost Brasil. “Tem gente nas ruas pedindo a volta da ditadura, defendendo o espancamento de homossexuais — tudo isso se traduz não só no momento do assassinato dos LGBTI, mas em todo o processo de exclusão.”
“A própria prefeitura, em operação com o governo estadual, tem tirado travestis de áreas de prostituição com extrema violência, pelo simples fato de estarem ali”, defende. “A prefeitura quer tirar essa população daquele lugar e vendê-lo para empresários. Isso tem acontecido em diversas capitais.”
Na conversa com o HuffPost, Larrat comenta vários assuntos, como as esperadas eleiçõesde outubro deste ano, a atitude que os presidenciáveis devem ter em relação às demandas do movimento e como o Transcidadania está hoje, após a saída de Fernando Haddad (PT)da prefeitura da capital paulista.
HuffPost Brasil: Em dezembro de 2017, o Conselho Federal de Psicologia aprovou uma regulamentação que proíbe todos os psicólogos do Brasil de tratar a travestilidade e a transexualidade como doença ou anomalia. No entanto, ainda há resistência por parte da sociedade para entender que ser trans não é ser doente. Como lidar com essa “não-aceitação” das pessoas trans?
Symmy Larrat: A homossexualidade já não é reconhecida como doença pela Organização Mundial da Saúde, mas nós ainda somos [como “doentes”]. A questão é: tanto a homossexualidade quanto a travestilidade ainda são considerados, por parte da população, como doenças. Só que uma delas, que é a travestilidade e a transexualidade, ainda é legitimada pelas organizações de saúde, o que só aprofunda a vulnerabilidade em que essa população vive, só reforça exclusões que são históricas. O passo do CFP é muito importante, é positivo ele dar o primeiro passo para dizer “não, nós não podemos aceitar que nossas práticas sejam coniventes com esse processo”. Eles têm a ousadia — uma palavra que eu amo — para dizer isso. É um passo muito importante para enfrentar a patologização. E, para mim, não basta apenas despatologizar: a gente precisa criar ferramentas normativas que despatologizem. Quando, por exemplo, eu vou ao Judiciário e peço a alteração de nome, mas para isso preciso de um laudo médico, é o Judiciário patologizando um processo que não é de saúde. Se a Xuxa pode mudar de nome, se o Pelé pode mudar de nome, por que eu não posso? Só porque o laudo considera doença? Por que a Xuxa não precisou mostrar um laudo dizendo que, para ela, esse nome é constrangedor? Por que ela é famosa? Eu também sou um pouquinho famosa, mas não bastou isso para a Justiça.
A inclusão continua a ser uma questão complicada para as pessoas trans — tivemos até personagens trans em novela das 21h, mas a presença do debate em escala mainstream não tem garantido a inclusão e o reconhecimento dos direitos em um sentido mais concreto. Um exemplo recente é o caso da jogadora de vôlei Tifanny Abreu.
A gente continua a sofrer violências porque o debate ganhou visibilidade muito recentemente. É claro que em relação a 20, 30 anos atrás, a gente avançou, mas ainda não conseguimos superar a vulnerabilidade. A gente vê, por exemplo, gays, lésbicas e bissexuais a ocupar certos espaços que nós não ocupamos. Não quero fazer disputa de pautas, só quero exemplificar que ainda não conseguimos acompanhar nossos companheiros de luta em muitos espaços. Todas essas pautas ainda precisam de muita luta, de muito avanço. Hoje, pelo menos, a questão do debate em escala mainstream nos permite pressionar para que, tudo o que já conquistamos, a gente consiga legitimar. Vejo de maneira positiva a visibilidade do debate na mídia. No entanto, ainda tem resistência e desconhecimentos muito grandes que precisam ser sanados. E isso só se faz com luta, com ocupação desses espaços de luta. É o que nos resta. A gente não pode cessar as nossas ocupações e o nosso diálogo só porque aparecemos na TV. A gente tem que aproveitar para continuar dialogando na fila do pão, na vizinhança, em casa, no Executivo, no Legislativo, nas empresas, em qualquer lugar, para conseguir mudanças.
No caso da jogadora de vôlei, às vezes, as pessoas questionam se ela tem que entrar no esporte ou não. Mas, na minha opinião, a questão não é essa — porque ela já está, a gente já autorizou. Ela passou por diversos exames, etapas etc. para demonstrar que pode praticar o esporte. A questão é: de que modo isso volta para a população trans? A indústria farmacêutica não cria hormônios para travestis, mas para mulheres cisgêneras; o que nós temos hoje é um paliativo. E o que nós queremos é que mulheres trans não sejam vítimas de tráfico de pessoas, como acontece no futebol. Quantos jovens não são vítimas de tráfico de pessoas ao serem vendidos para times de fora? A gente não quer, mais uma vez, que nossos corpos sejam vítimas do que não venha de nossas legítimas intenções.
De que forma, com esse debate, partindo do pressuposto do preconceito, a gente não vai levar para o esporte mais mazelas, mais violações aos direitos humanos. Devia ser o contrário: essas experiências deveriam voltar para gente como possibilidades de melhorias. A indústria talvez financie pesquisa no esporte, como acontece com a Fórmula 1. São pesquisas que acontecem nela e voltam para a indústria automobilística. Tem pesquisas que acontecem no futebol e voltam para a saúde da população. É essa a lógica. De que forma isso volta para a acessibilidade das pessoas trans ao esporte e a outros espaços, e não criar outros espaços de isolamento? A gente cai nesse debate e cria espaços em que pessoas continuando sendo vendidas, aqueles corpos continuam a servir como objeto de exploração e violência.
Você coordenou o Transcidadania em São Paulo. Agora o Haddad, cuja gestão criou o projeto, não é mais prefeito, mas o João Doria (PSDB). Você crê que isso trouxe mudanças a esse projeto tão elogiado?
O programa existe, mas só no nome, porque mudou de conteúdo. Não estão mais formando cidadãos e cidadãs; com a mudança de gestão, o Transcidadania não tem mais esse objetivo. Ele simplesmente tenta encaminhar a pessoa ao mercado de trabalho sem uma preparação. E, obviamente, o mercado não vai conseguir absorvê-la, porque essa pessoa não está aproveitando o período no Transcidadania para, por exemplo, fazer a elevação de escolaridade. Na nossa ideia, a pessoa tinha que passar por todo o período de dois anos — que a gente já achava pouco e queria ampliar — e por todas as etapas para conseguir a elevação de escolaridade e, a partir daí, concorrer no mercado. Mas hoje não: hoje você fica três meses e consegue um subemprego. O programa tinha que ajudar essas pessoas a construir uma trajetória e superar essas carências. A gente tinha uma equipe específica para o programa, com psicólogos, pedagogos e assistentes sociais, mas hoje não tem isso. Há profissionais espalhados por São Paulo e, muitas vezes, sem as formações paralelas adequadas. Hoje [quem participa do programa] cumpre horas de estágio na prefeitura e, às vezes, até sem conseguir a elevação de escolaridade. O programa continua com o mesmo nome, mas todas as etapas não são mais as mesmas. Só utiliza o mesmo nome e o marketing, mas em seu conteúdo, não é o mesmo programa, o que é muito ruim.
Para Larrat, o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff tem reforçado iniciativas higienizadoras na sociedade brasileira. Ela menciona como exemplo o que tem acontecido aos locais simbólicos, como o Largo do Arouche, em São Paulo.
O que você pensa a respeito da condenação do Lula? Como ele afeta a população trans?
O julgamento do Lula é uma “Caixa de Pandora” que vai abrir a possibilidade de legitimar a exclusão de uma parte da população do País que já está historicamente excluída. Quando nós vamos a uma delegacia, por exemplo, já somos culpabilizados pela violência que sofremos, e isso tem muito a ver com essa legitimação, um processo em que não precisa-se mais de provas, de mais nada além do achismo, a avaliação moral das pessoas. A gente vive isso na pele todos os dias de nossa vida, ao procurar emprego, na escola, na padaria, na rua. Com a condenação do Lula, o Estado e a Justiça podem operar com essa lógica sem desfaçatez, sem qualquer medo. A inclusão não acontece? Acontece, mas a gente sempre recorria às vias legais para tentar diminuir e sanar essa violência que não é só nos colocada pela sociedade como também é pelo Estado. A parte da sociedade que se cala diante disso legitima um processo que tem acontecido não só com o Lula, mas com toda essa parcela da população composta por LGBT, mulheres vítimas de violência, negros e negras, a juventude negra, a juventude da periferia, a população com deficiências. É um processo muito perigoso que chancela toda essa violência com a democracia como um todo, com um processo que não se precisa mais de prova para condenar alguém.
A respeito do julgamento de Lula, as eleições de 2018 são uma peça-chave nele. O que você pensa dos atuais presidenciáveis? Já sabemos que Lula, Marina Silva, Jair Bolsonaro, Geraldo Alckmin, Ciro Gomes e Manuela D’Ávila pretendem concorrer.
A disputa eleitoral, infelizmente, vai se dar com o marco do debate moral, com esse discurso moralista e conservador imposto para a sociedade há anos e que exclui várias pessoas. Parcela dos presidenciáveis se pauta nessa discussão, como Bolsonaro, Marina Silva e Alckmin — que já teve um discurso menos conservador, mas hoje opera com esse processo de exclusão —, e estamos vendo pessoas que, além de Lula, se colocam na disputa outros candidatos do campo progressista. Eu acho isso importante, porque a gente não centraliza tudo em uma pessoa só, mostra que os progressistas também têm candidatos para disputar. Nós, os LGBTs, vemos com muito receio quem disputar as eleições com base nesse discurso de ódio, o mesmo que empoderou o golpe. A eleição de 2018 será extremamente polarizada, entre o discurso bastante moralista e conservador e o mais progressista. A população LGBT tem que ficar muito atenta para não legitimar no voto uma galera conservadora que vem com um discurso um pouco disfarçado; tem que ficar atenta a essas parcerias, de quem quer que seja, para não legitimar candidatos financiados por conservadores, como foi o golpe. O que vemos hoje? Um governo que tem simplesmente zerado as contas para os LGBT, sem apoio algum para nossas pautas.
O Brasil continua a ser um dos países líderes de assassinatos motivados por transfobia. O que os presidenciáveis devem ter em mente ao lidar com essa realidade em possíveis propostas?
É importante dizer que o Brasil lidera o ranking dentre os países que têm algum tipo de registro desse fenômeno. Dito isto, eu não acredito que a gente terá uma proposta que solucione esse problema, pois não há como, há divergências nas propostas. Um candidato vai achar que a solução é o caminho A, e outro, o caminho B. Essa disputa é necessária, natural, existem vários movimentos que pensam de maneiras divergentes, inclusive. É um genocídio, na minha opinião, não só da população trans, mas da LGBT em um todo. O importante, então, não é criar proposta A ou B, mas não eleger um presidente que seja covarde — porque, com covardia, a gente não governa e não tira o País dessa situação. Nós precisamos de candidatos que tenham a ousadia de enfrentar o conservadorismo e dizer que sua gestão terá a promoção da cidadania LGBT. Não queremos candidatos que não adotem nossa pauta por receio de perder votos. Um bom candidato ou um bom presidente é aquele que, em sua disputa, demarca o campo em que está. E isso não se faz com covardia.
Caio Delcolli