Em sua nova coluna, a promotora Gabriela Manssur fala sobre as críticas ao movimento feminista lançado por atrizes de Hollywood
(Marie Claire, 01/02/2018 – acesse no site de origem)
Eu tenho um grande amor pela França. Na infância, meu sonho era conhecer a Torre Eiffel e minha mãe, advogada de família, me dizia que quando ela ganhasse um “caso bom”, me levaria. Então eu, minha mãe e minha irmã nos matriculamos numa escola de francês perto de casa esperando chegar a nossa vez. Me recordo que minha mãe se esforçava muito para pagar o curso para as três, mas ela dizia que era o melhor momento do dia: nós três juntas, aprendendo francês com o Monsieur Lombard para um dia irmos juntas para França, onde o feminismo nasceu.
O tal “case de sucesso” da minha mãe saiu e lá fomos nós para Paris. Eu tinha 15 anos e me lembro como se fosse hoje. Olhei pela primeira vez para a Torre Eiffel e fiquei tão emocionada que não conseguia parar de chorar. Pela beleza, pela magia, pelas conquistas da minha mãe, que mostrou para suas duas filhas que se você acredita, se você se dedica, você consegue. Foi lá na França que entendi muito sobre a nossa luta e sempre que eu volto lá tenho as mesmas memórias: as mulheres fortes que tive e tenho como exemplos. Ficou marcado, acendeu uma chama no meu peito e é ela que me trouxe até aqui.
Confesso que fiquei surpresa e decepcionada ao ler sua carta Madame Catherine Deneuve, o artigo da Senhora Danuza Leão e os comentários de muitas mulheres que as apoiaram. Respeito todas as opiniões, afinal, liberdade de expressão é direito constitucional, mas ouso discordar. Explico.
Aqui no Brasil, a cada 15 segundos, uma mulher sofre algum tipo de violência: física, sexual, patrimonial, psicológica e moral.
Acredita que nós somos o 5º. País do mundo com o maior índice de feminicídios?
Sabe qual o percentual de mulheres brasileiras que já sofreram assédio sexual no trabalho no ano de 2017: 50%, ou seja, metade das brasileiras.
Mesmo com esse altos índices, a sensação é de que não temos voz: apenas 10% dessas mulheres denunciam, apesar de termos a 3ª. melhor legislação do mundo na proteção dos direitos das mulheres, a Lei Maria da Penha, já ouviu falar?
Mas eu percebi, querida Catherine, que movimentos como o TIMES UP fazem com que as mulheres se inspirem, se sintam representadas e encorajadas. Eles têm um impacto muito positivo: os números de denúncias aumentam consideravelmente e faz com que essas mulheres reajam, busquem ajuda e quem sabe, sejam salvas pela Justiça. Consequentemente, os agressores se intimidam, muitos são condenados, o que os impede de cometerem crimes com outras mulheres, já que 65% dos homens agressores são reincidentes. Não é maravilhoso?
Esse tipo de movimento fez com que um dos assuntos mais comentados em janeiro de 2018 na internet, redes sociais, televisão, jornais, revistas fosse sobre mulheres e seus direitos. E isso é muito bom, pois em termos de violência contra a mulher, o silêncio e a invisibilidade matam!
Madame Deneuve, o movimento TIMESUP inspirou uma menina de 18 anos que sofreu abuso do padrasto dos 11 aos 13 anos, conseguiu superar o medo e a vergonha, revelar o abuso e pedir ajuda. Segundo a moça, quando os abusos ocorriam, ela ficava como uma “lagartixa” presa na parede, não conseguia se mexer e ele dizia para ela: “atrás pode, na frente é que não pode”, até ejacular. Pedi a prisão dele. Consegui! Seria uma onda de denúncias, ou a busca pela Justiça?
Mais uma consequência espetacular do movimento TIMESUP: uma amiga de faculdade revelou que sofreu assédio sexual por 8 meses onde ela trabalha. Toda vez que ela entrava na sala, o chefe trancava a porta e se aproximava dela, com as chaves nas mãos e falava: “agora somos só nós dois”. Ele a abraçava sutilmente e tentava massagear as costas delas. Ela me disse que “congelava”, que pensava em pular da janela por não conseguir reagir. Tinha vergonha, medo de perder o emprego com 3 filhos para sustentar, recém divorciada. Ela virou a mesa, virou o jogo e denunciou. Ele foi mandado embora.
Muitas mulheres já perderam seus empregos por terem denunciado o assédio sexual no trabalho. Elas foram obrigadas a pedir demissão ou fizeram um acordo. Outras, nem denunciaram, mas mesmo assim pediram demissão porque simplesmente não podiam mais ficar naquele local: desenvolveram síndrome do pânico e depressão. Movimentos como o TIMES UP faz com que as empresas mudem suas posturas e adotem um “código de conduta”.
Nós mulheres não queremos que alguém passe as mãos nos nossos joelhos enquanto estamos trabalhando. Não queremos que nossas filhas estagiárias tenham um “beijo roubado” ou investidas sexuais forçadas por serem jovens, estarem de minissaia, decote ou batom vermelho.
Os crimes sexuais, de qualquer forma que eles se manifestam, não podem ser considerados como uma “paixão” ou “paquera”, mas sim um fator de domínio, de comando e de submissão.
Ao contrário de “puritanismo”, denunciar quando somos “atacadas” chama-se LIBERDADE. É um direito nosso e disso não abriremos mão, queridas francesas. O problema é que quando há uma denúncia desse tipo, ainda é o comportamento da mulher é que é julgado: “ela quis”, “ela provocou”, “por que ela demorou tanto para denunciar”? Há uma inversão da realidade. Parece que ninguém se interessa em analisar o comportamento do homem. Onde está a tal força do homem se ele não pode resistir a uma mulher, a uma minissaia, a um decote?
Talvez eles se fortaleçam exatamente pelo fato de sermos muitos críticas umas com as outras, se apoiando em discursos como “as mulheres se destroem entrei si”, “as mulheres não conseguem trabalhar juntas”, “mulher não vota em mulher”, dando ainda mais força para o machismo que está por trás de tudo isso. E sua carta Mademe Deneuve, nos fez lembrar disso.
Mas, afinal, de que lado estamos?
Pode reparar, nenhum homem levantou a voz contra as mulheres vestidas de preto no Golden Globes. Não precisou, as próprias mulheres criticaram o movimento. E os homens sabiam que isso aconteceria.
Mas também, vamos combinar: que homem se levantaria contra várias mulheres unidas? Nenhum. Isso intimida. Se fosse uma só mulher, isso poderia acontecer. Mas contra várias, não. Experiência própria. E aí está a nossa força: a nossa união.
Uma pena que não seja tão fácil assim, parece que essa tal rivalidade está enraizada em nós. Eu li que até na Revolução Francesa havia grupos de mulheres contra as feministas que foram para as ruas. Será que precisaremos de uma nova revolução para estarmos mais próximas e unidas? Ou ainda continuaremos ouvindo uma das outras “…ah se fosse comigo…”
O duro é que foi tão difícil chegarmos até aqui e cada mulher sabe a dor e a alegria de ser o que é.
Algumas revelam suas histórias, quase que como um desabafo, um grito de coragem ou simplesmente, um pedido de ajuda. Outras não têm histórias de violência para contar, mas resolvem falar por todas e se unem a uma só voz.
Há as que silenciam e são essas que precisam da nossa luta, do nosso “feminismo”. E há, repito, as que criticam, talvez porque AINDA não sofreram nenhum tipo de violência ou discriminação; ou se sofreram e superaram, acreditam que todas têm que ter a mesma força. Mas sabemos que não é bem assim.
Prefiro utilizar minha força e meu poder, se é que os tenho, justamente para fortalecer outras mulheres e não julga-las. Faço minha parte, levanto da cadeira e vou à luta. Portanto, me sinto no direito de me manifestar sobre aslguns comentários que li:
1) não me sentiria pior que outras mulheres se fosse embora sozinha de uma festa por não ter um parceiro para me acompanhar. O fato de lutar pelos direitos as mulheres não significa que somos sozinhas e mal amadas. Isso é ridículo e “démodé”. Na dúvida, pergunte para a Michele Obama.
2) Como ativista, não me sentiria uma “bolsa de grife” se fosse escolhida por uma atriz para acompanhá-la em um evento como o Golden Globes, não me sentiria “a tiracolo” de ninguém. Com todo respeito, isso é mais ridículo ainda. Pelo contrário, adoraria ver meu trabalho repercutindo pelo mundo, inspirando outras mulheres. Me sentiria lisonjeada se uma mulher como Meryl Streep ou como Oprah me dessem espaço para mostrar minha cara, minha luta e meu “look” preto, por que não?
3) Também não achei a premiação nenhum funeral, afinal “black is always the new black”. Clima de funeral eu sinto quando recebo uma certidão de óbito de uma mulher assassinada pelo ex-marido, vítima de feminicídio. Ou, quando percebo que uma mulher não consegue reagir, muitas vezes num ciclo de violência que mais parece uma “morte anunciada”.
Quero te contar uma coisa, querida Deneuve, nós aqui no Brasil continuamos a lutar contra um estupro a cada 11 minutos e veja só o que acontece:
Um MC (cantor de funk) lançou uma música em que a letra dizia: “taca bebida, taca a pica e abandona na rua”, com grande sucesso. É triste, pois o que ele canta é crime de estupro: aproveitando da embriaguez e da impossibilidade de defesa da mulher, alguém transa com ela à força. Sabe quantos casos desses temos? Muitos. Sabem quantos desses casos são denunciados? Poucos. Mas, o mais grave Catherine, é que muitos desses casos causam gravidez precoce (cerca de 18% dos bebês nascidos no Brasil são provenientes de mães adolescentes, acredita?), principalmente nas classes mais baixas da sociedade, retirando toda e qualquer oportunidade de vida dessas meninas, na sua maioria, negras. E na França, esse índice é de quanto? Não encontrei pesquisas a respeito.
Mas tem um grande detalhe: a união das mulheres contra essa música foi tão forte que a retirou do Spotify e fez com que o cantor mudasse a letra. Grande vitória das mulheres, para as mulheres!
Apesar de tudo, podemos terminar o mês de janeiro comenorando: o treinador Larry Nassar foi condenado a até 175 anos de prisão pelos 150 casos de assédio sexual. A sentença foi prolatada por uma mulher, Rosemarie Aquilina, que além de juíza, sempre foi militante pelos direitos das mulheres e que nos deixou uma grande mensagem em sua sentença: “DEIXE SUA DOR AQUI. SAIA E FAÇA AS SUAS COISAS MAGNÍFICAS.”
Bom, deixe eu voltar para o meu trabalho. Só hoje, na promotoria de justiça de violência contra a mulher em que atuo, foram várias denúncias e processos de crimes que muitas vezes não deixam marcas aparentes, mas que machucam o coração. E o meu bate mais forte cada vez que consigo fazer Justiça para essas mulheres.
Aliás, fica o convite para acompanhar um dia, apenas um dia, minha rotina de trabalho: audiências, processos, prisões, atendimento às mulheres. Muita violência, muito preconceito, muito sofrimento. Talvez todas as mulheres que são contra esses movimentos, que falam que “a vida ta ficando chata” e que “é fácil falar não”, mudem de opinião.
Madame Catherine Deneuve, continuo te achando uma das atrizes mais lindas, elegantes e respeitadas do mundo. Continuo amando a França, a Torre Eiffel e as lembranças que elas me trazem. Mas, por ora, tenho pensando seriamente em substituir meu lema favorito de “Liberté, égalité, fraternité” por “TIMES UP”. Ainda dá tempo de desejar a todas FELIZ 2018?
Maria Gabriela Prado Manssur, Promotora de Justiça, participa do Grupo de Atuação Especial de Enfrentamento à Violência Doméstica e da Diretoria da Mulher da Associação Paulista do Ministério Público (Ministério Público do Estado de São Paulo)