Ativista e defensora dos direitos das pessoas transexuais e travestis, Maria Clara de Sena, pernambucana, mulher negra e trans, precisou sair do país e se tornar, oficialmente, uma refugiada pela condição de ser quem é.
(Marco Zero, 29/01/2018 – acesse no site de origem)
Vítima de transfobia e racismo enquanto trabalhava representando o estado brasileiro, passou a ser perseguida por um agente de segurança penitenciária, também funcionário público, quando foi colocada em um programa de proteção que se revelou incapaz de garantir sua integridade física, emocional e psicológica.
“Você consegue imaginar o que é acordar com uma temperatura de 22, 23 graus negativos, um local cheio de gelo, um local onde as pessoas não se conhecem, não se comunicam? É muito louco, mas preciso me adaptar. Agora está menos dolorido porque eu comecei a falar com as pessoas sobre o que aconteceu, sobre quem eu era”, conta com a voz tranquila e firme.
Procurada pela reportagem do Marco Zero Conteúdo, a Secretaria de Justiça e Direitos Humanos de Pernambuco (SJDH) informou que não se posicionará sobre as declarações de Maria Clara de Sena sobre ter sofrido transfobia e racismo enquanto trabalhava no Mecanismo de Prevenção e Combate à Tortura de Pernambuco, e não ter sido protegida pelo Programa de Proteção a Defensores de Direitos Humanos. Questionada por e-mail, no dia 25 de janeiro a SJDH havia declarado que desconhecia pedido de refúgio da ex-funcionária.
Conversei com Maria Clara no dia seguinte à audiência em que foi aceita sua solicitação de refúgio no Canadá. Desde o dia 18 de janeiro ela pode respirar com algum alívio, mas não totalmente em paz. Pergunto como é a sensação de ser agora uma refugiada. Com um olhar distante, ela observa em silêncio alguma cena fora da livraria onde está fazendo a chamada por skype, e responde que está tudo bem. Seu objetivo é aprender a falar inglês, conseguir um emprego, continuar os estudos, quem sabe trabalhar em organizações que apoiam pessoas trans.
Maria Clara reflete sobre a condição da população trans nos presídios brasileiros, situação que ela acompanhou de perto no seu trabalho no Mecanismo de Combate e Prevenção à Tortura de Pernambuco, instrumento ligado à política internacional da ONU de combate a violações de direitos humanos em presídios. Do tempo trabalhando como agente do estado ela tem muito a dizer, desde o tratamento recebido pela estrutura do governo e críticas à falta de autonomia para desempenho de suas atividades.
Alguém na livraria pede que ela fale mais baixo. Emocionada, Maria Clara reafirma que vai continuar atuando na defesa das pessoas trans. Planeja reunir documentos e atuar de fora para pressionar o Governo de Pernambuco e o estado brasileiro a melhorarem o tratamento muitas vezes desumano que destinam à população LGBT nos presídios brasileiros.
O processo de solicitação de refúgio durou cerca de seis meses, relativamente rápido, mas ainda assim meses de ansiedade. Ela contou com ajuda da organização canadense The 519, que acolhe, orienta e promove a adaptação de pessoas LGBTQ que se refugiam no país.
Desligada do Mecanismo de Combate e Prevenção à Tortura de Pernambuco, por meio da exoneração publicada no Diário Oficial de Pernambuco em 13 de setembro de 2017 (retroativa a 17 de agosto de 2017, segundo Secretaria de Justiça e Direitos Humanos), Maria Clara de Sena traz na sua história um fragmento do retrato da população transexual no Brasil.
Apesar de ter ocupado uma posição de destaque nacional e internacional – Maria Clara é considerada a primeira mulher transexual a fazer parte de um mecanismo de combate à tortura no mundo -, ser uma mulher trans foi o motivo que a levou a mudar totalmente de vida, deixar família e amigos no Brasil para, como ela mesma diz, “continuar erguendo a voz” contra as violências que outras pessoas trans sofrem todos os dias.
“Como você conseguiu sobreviver?”
Após conhecer a história que levou a brasileira até o Canadá, a juíza que concedeu o status de refugiada perguntou como ela tinha conseguido sobreviver no Brasil, país que mais mata travestis e transexuais no mundo. Maria Clara conta que, nesse momento, ela desabou de emoção. “Como é que as pessoas não estão vendo o que está acontecendo?”, ela pergunta. Devido a um problema com a tradutora, a juíza havia rejeitado o pedido em uma primeira audiência. Agora, ela pediu desculpas. “O mundo sabe disso. Imagine o que Maria Clara passava lá”, disse a juíza.
Em números absolutos, o Brasil é o país que mais mata pessoas trans no mundo. Entre 2008 e 2016 foram registrados 868 homicídios de pessoas trans, que representam cerca de 40% do total de casos registrados no mundo, de acordo com levantamento da ONG Transgender Europe. Em 2017, 185 pessoas trans foram assassinadas segundo dados do Observatório Trans, divulgados no início deste ano no Dossiê A carne mais barata do mercado.
Agora Maria Clara aguarda a burocracia para dar entrada nos documentos que irão reconhecer sua identidade canadense. A carta que chegará não só oficializará a condição de refugiada, mas vai marcar o início de uma nova fase na vida da pernambucana. Como refugiada, se ela voltar ao país onde nasceu pode perder a condição que, hoje, garante a sua segurança. Mas isso não quer dizer que Maria Clara deixará de atuar nas causas que defende. “Chegou a hora de o mundo saber o que acontece no Brasil e eu vou falar quantas vezes for preciso. O que aconteceu comigo é apenas um pavio. A ponta do iceberg”, promete.
Ela planeja, agora, formalizar uma denúncia em organismos internacionais: “pedindo punição pelo que foi feito comigo e as violações de direitos humanos que eu vi”.
“Agora eu estou mais tranquila, mas a responsabilidade triplica. Agora a gente precisa falar o que de fato a gente viu. Agora eu sei que posso falar. Acho que tudo acontece quando tem que acontecer”.
Agressão e perseguição
Uma visita regular de representantes do Mecanismo de Combate e Prevenção à Tortura de Pernambuco ao presídio de Santa Cruz do Capibaribe, em agosto de 2015, na época recém finalizado, foi o início do pesadelo de Maria Clara. Por meio de um discurso de ódio a direitos humanos, a agressão de um dos funcionários direcionada às integrantes do Mecanismo como um todo se virou contra o elemento mais frágil, com xingamentos transfóbicos e racistas contra Maria Clara.
“Direitos humanos só vem aqui para proteger bandido” foi uma das primeiras frases que acenderam o alerta no grupo. Dali em diante, Maria Clara lembra que as provocações continuaram até o momento em que o agente insistiu em chamá-la pelo nome que consta nos seus documentos, apesar dela explicar e pedir que não o fizesse. O grupo continuou a visita às instalações tentando ignorar as agressões verbais até que decidiu interromper a visita. A confusão teve início já na saída do presídio, com novas provocações do agente.
Maria Clara teve uma arma engatilhada apontada para seu rosto enquanto trabalhava como agente do estado em um órgão que tem por objetivo combater violações de direitos humanos. Dali para frente a sensação de vulnerabilidade no trabalho, e fora dele, não a abandonou.
“Depois que aconteceu isso ele mandou mensagem para meu facebook, inclusive estava presente em ocasiões que eu estava trabalhando. O serviço de proteção sabia que ele ia estar lá, não avisava para mim, não avisava para ninguém. Eu não sabia o que podia acontecer”, relembra.
A agressão resultou, no primeiro momento, em uma investigação sobre a conduta do agente, que segundo relatos de outros profissionais à equipe do Mecanismo tinha um histórico de agressividade e intolerância. O agente também registrou um boletim de ocorrência alegando ter sido agredido por Maria Clara.
Segundo a Secretaria de Justiça e Direitos Humanos foi aberta uma sindicância contra o agente, que se transformou em um Processo Administrativo Disciplinar (PAD), e teve como penalidade a suspensão das suas atividades profissionais por um prazo máximo de até 30 dias.
No entanto, a punição não impediu que o agente começasse a perseguir Maria Clara. Durante meses ela relata que sofreu ameaças indiretas, ligações não identificadas e o agente teria ido ao local onde vivia, motivo pelo qual ela mudou de residência por duas vezes, chegando a passar um tempo fora do estado.
A partir disso, Maria Clara entra no Programa Estadual de Proteção a Defensores de Direitos Humanos (PEPDH). De acordo com a Secretaria de Justiça e Direitos Humanos de Pernambuco, atualmente existem 40 pessoas sob proteção. Para entrada no programa é preciso passar por uma avaliação de uma equipe técnica para análise de perfil e também por um conselho deliberativo. O objetivo dos programa é garantir a segurança de defensores, além de fornecer suporte psicológico para a retomada da vida dessas pessoas.
Ela foi, então, “tirada de circulação” pelo programa, por dois meses, quando viajou para a Bahia. De lá, no entanto, recebeu a notícia de que tinha que voltar ao trabalho com urgência, no dia seguinte. “Quando eu cheguei no outro dia tava um circo montado de gente, me perguntando muita coisa. Eu fiquei ‘meu deus, o que é isso?’ Disseram ‘você não vai poder ficar no seu apartamento, você vai ficar sozinha, não pode ter telefone, faz isso, faz aquilo”, lembra, com agonia.
Ela passou a morar numa cidade próxima ao Recife, e foi orientada a morar na casa da mãe, em um bairro da periferia recifense com a promessa – nunca realizada – de que instalariam câmeras de segurança. De lá, com medo de colocar em risco também a integridade de sua família, Maria Clara teve que se mudar por outras duas vezes, chegando a morar durante meses na sede do GTP+, organização não governamental que trabalha no apoio a pessoas trans portadoras de HIV.
“Eu estava sendo acompanhada tecnicamente, mas na prática não tinha minha segurança garantida. Eu saia de casa sozinha, mas havia um papel em que estava escrito que eu estava protegida. Eu tentei acreditar tanto nisso que fiquei de 2015 até agora no Brasil”, desabafa.
“O PEPDH dizia que eu só podia fazer visita (de trabalho aos presídios) com escolta, e a própria lei do Mecanismo prevê que as visitas têm que ser feitas sempre acompanhada por mais duas pessoas, mas eu fui obrigada a ir sozinha porque outras pessoas do Mecanismo não foram comigo”, conta. De volta ao trabalho, ela sofreu novamente provocações e intimidações de agentes em outras unidades prisionais.
Maria Clara decidiu deixar o programa e o Brasil por não acreditar no sistema de proteção. “Por eu entender que não tinha segurança nem no Mecanismo, nem no programa, nem na secretaria. Ele (o agente que a ameaçou diversas vezes) está esperando só a poeira baixar”, diz.
Vida no refúgio
No final de junho de 2017 Maria Clara chegou ao Canadá, sem saber falar uma palavra em inglês. Ela contou com a ajuda de pessoas e organizações que arrecadaram recursos para a compra da passagem e a garantia de moradia. Maria Clara não conhecia nada sobre o Canadá, além de que era bastante frio. “ A única coisa que tinha pesquisado eram algumas ONGs que trabalhavam com pessoas LGBT. Eu não sabia inglês. Eu coloquei o mapa no computador e era a única coisa que eu tinha”, relata.
É pela internet que Maria Clara mantém contato com amigos e ativistas que a apoiaram na ida para o Canadá. Em março deste ano, o GTP+ realizará a Primeira Semana Maria Clara de Sena de Cidadania e Direitos Humanos em homenagem à ativista que se formou e atuou na organização. Mesmo com a distância e os desafios de reconstruir a vida em um lugar diferente, ela deseja continuar atuando em parceria com grupos de Pernambuco.
Apesar de ser reconhecido como um dos países que mais concede refúgio, o Brasil tem números expressivos de cidadãos que, na contramão, têm que sair do país para proteger suas vidas. São 5.585 espalhados pelo mundo, segundo o relatório Global Trends de 2017, da Acnur (Agência para Refugiados da ONU).
As alegações para solicitação de refúgio são inúmeras, mas giram em torno da perseguição e do risco à integridade física. De acordo com o Estatuto de Refugiados de 1951 são refugiadas pessoas com “fundado temor de perseguição por motivos de raça, religião, opinião política ou participação em grupos sociais, e que não possam voltar (ou não queiram) voltar para casa”. Legalmente, é preciso fornecer comprovações para obter o status de refugiada.
De acordo com dados da Acnur Brasil publicados pela Folha de São Paulo, em 2014 haviam 1.208 refugiados brasileiros pelo mundo. Na época, os Estados Unidos era o país que mais havia aceitado brasileiros. O Canadá figurava no segundo lugar, com 175 pedidos acatados e 73 solicitações à espera de resposta. Maria Clara de Sena, no entanto, pode ser a primeira mulher transexual brasileira refugiada no Canadá.
Segundo a Acnur, pessoas que são perseguidas e têm a vida em risco devido à orientação sexual e o que chamam de “minorias sexuais”, que pode ser interpretado como transexualidade, podem obter a condição de refúgio quando “estão sujeitas a ofensas, tratamentos desumanos ou a grave discriminação devido à sua homossexualidade e/ou orientação sexual e cujos governos não são capazes ou não as queiram proteger”.
A falta de estatísticas sobre a população LGBTQ em situação de refúgio (legal ou ilegal) é um desafio para perceber a dimensão da vulnerabilidade no Brasil, país que mais mata pessoas transexuais no mundo.
Defensora de direitos humanos
Maria Clara enxerga racismo institucional no modo como foi tratada. Segundo ela, a pressão para que voltasse ao trabalho sem garantias de proteção pelo PEPDH é um desses exemplos. “Eu comecei a me silenciar. Nesse período queriam que eu voltasse ao trabalho sem ter proteção. Queriam que eu voltasse urgentemente. Tive que sair do meu apartamento e fui morar no Janga, mas não tinha escolta, não tinha nada. Fiquei sem suporte nenhum”, relembra.
Depois da agressão que sofreu, convivendo com a perseguição do seu algoz, Maria Clara conta que passou a perceber “vários fatores que aconteciam e comparava com a lei” no trabalho no Mecanismo. Uma de suas críticas é a falta de autonomia que impunha dificuldades para o dia a dia de acompanhamento do sistema prisional. “A partir desse momento eu comecei a focar mais na população trans”, conta.
Ao longo dos dois anos, a vida de Maria Clara foi marcada pelo medo. Uma das estratégias de proteção foi utilizar a visibilidade de seu trabalho, da atuação junto a movimentos sociais, para criar uma rede de apoio que garantiria sua segurança. Em 2016, foi a primeira mulher trans a receber o prêmio Cláudia, na categoria Políticas Públicas, pelo trabalho no Mecanismo de Prevenção e Combate à Tortura, ligado à ONU.