A cada minuto uma mulher recorre à prática do aborto no Brasil, conforme sinalizam os dados da Pesquisa Nacional do Aborto (PNA), publicada em 2016. São mais de 500 mil brasileiras por ano, estima-se que 200 a 500 morram. Na noite da última quarta-feira (21/02), Caroline Mele Machado Duo, 23 anos, foi encontrada morta em uma quitinete, em Itapema, litoral de Santa Catarina. Suspeita-se que estava grávida de seis meses e meio. O namorado E. K. H., 26 anos, e C.R.H., 56, que estava no local, foram presos em flagrante, suspeitos dos crimes de aborto qualificado pela morte da gestante e venda de remédios sem registro. A jovem foi encontrada sobre a cama do quarto, com sangue na região da boca e já sem os sinais vitais. Somente após o laudo do Instituto Médico Legal (IML) será possível entender como Caroline veio a óbito.
(Catarinas, 23/02/2018 – acesse no site de origem)
Natural de São Carlos (SP), Caroline morava em Rio Preto (SP) e cursava Nutrição na Universidade Federal do Triângulo Mineiro (UFTM), em Minas Gerais. O velório e sepultamento ocorrerão neste domingo (25), na cidade natal. A coordenação do curso de Nutrição da UFTM divulgou nota de falecimento: “É com grande pesar que a Universidade Federal do Triângulo Mineiro (UFTM) se solidariza à dor de familiares e amigos e comunica o falecimento de Caroline Mele Machado Duo, aluna do curso de Nutrição.”
O caso
Acionado pelos dois homens por volta das 19h30, os socorristas do Samu chegaram ao bairro Tabuleiro Oliveira, porém não havia mais possibilidade de reanimar a jovem. No local, onde C. morava, foram encontrados comprimidos de Cytotec – nome comercial do misoprostol – luva cirúrgica, uma garrafa de refrigerante com odor de acetona e uma máquina artesanal que a polícia suspeita ser uma bomba de sucção.
De acordo com boletim da polícia militar, E. relatou que na quarta-feira ele e Caroline visitaram C., um amigo em comum dos dois. No início da noite quando a jovem foi tomar banho, estranharam sua demora e a encontraram desmaiada dentro do box com um sangramento vaginal. Os dois teriam a levado para o quarto e sobre a cama tentado reanimá-la.
Os dois homens relataram que o sangramento vaginal havia formado uma poça de sangue no chão do box, no entanto, o local estava limpo e com odor de produto de limpeza. Diante das suspeitas e evidências acerca da morte, a PM isolou o local e acionou a polícia civil.
“C., locatário da kitnet, estava muito preocupado com a situação e a todo o momento colocava as mãos sobre a cabeça”, diz o trecho do boletim.
Caracterização do crime
O delegado regional de Balneário Camboriú, Davi Queiroz, informou que o feto não chegou a ser expelido, o que não descaracteriza a morte da jovem pela prática do aborto. Os dois suspeitos permaneceram em silêncio durante o interrogatório. A decisão sobre a concessão de pagamento de fiança ou mesmo a conversão do flagrante em prisão preventiva é feita pelo juiz na audiência de custódia, prevista para acontecer até 24 horas depois do registro.
“Houve a prisão em flagrante do namorado dela e da pessoa que supostamente praticou o aborto. Eles foram encaminhados ao presídio. Depois da prisão, iniciaremos as investigações a fim de verificar se houve participação de mais alguém e se realmente tratou-se desse aborto qualificado pela morte da gestante”, explica o delegado.
De acordo com o policial, não se trata de uma clínica de aborto. C. morava no local há poucos meses. “Há indicativo que ele fazia comércio de medicamentos, alguns deles conhecidos para uso em aborto não têm registro no Brasil”.
A investigação aponta para os crimes previstos no artigo 273 do Código Penal, relacionado à venda ou depósito de produto destinado a fins terapêuticos ou medicinais, e 127 que trata do aborto em sua forma qualificada e aumenta as penas previstas nos artigos 124 (aborto provocado pela gestante ou com seu consentimento) e 125 (aborto provocado por terceiro). As penas são aumentadas de um terço, se, a gestante sofre lesão corporal de natureza grave, e são duplicadas se ocorre a morte.
Aborto inseguro
Há um consenso internacional de que a prática do aborto é considerada segura até as doze semanas de gestação, conforme limitação estabelecida em vários países onde é legalizada. De acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS) abortamento é a interrupção da gravidez até a 22ª semana de gestação e com o feto pesando menos de 500g. No Brasil, o procedimento só é permitido em casos de risco à vida da gestante, feto anencéfalo e gravidez resultante de estupro.
O aborto é a quinta causa de morte materna no país e em alguns estados está entre as primeiras. Conforme a OMS, o procedimento quando realizado de forma segura oferece menos riscos de morte que o parto.
“Mulheres não vão deixar de fazer aborto porque é crime. Quem não fez, conhece alguém que já fez”, afirma a médica Sandra Valongueiro, pesquisadora do Programa de Pós-graduação em Saúde Coletiva da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).
Segundo a médica, o procedimento em gestações com mais de 22 semanas recebe nome técnico pela medicina de “parto antecipado”. O parto antecipado exige cuidados hospitalares e só é permitido no Brasil quando a gravidez coloca em risco a vida da gestante ou há diagnóstico de feto anencéfalo. Para gravidez resultante de estupro, o Ministério da Saúde estabelece o período de até 22 semanas.
Sandra, que também é membra do Comitê de Mortalidade Materna do estado de Pernambuco, acredita que a tragédia de Caroline é parecida com a de milhares de brasileiras que são levadas a procedimentos de risco depois de tentativas frustradas. “Ela fez uma rota, saiu de um lugar, provavelmente não teve acesso onde estava e talvez também tenha fugido para se esconder, por causa da clandestinidade”.
Para a pesquisadora a morte leva a pensar sobre o silenciamento relacionado ao drama de mulheres que se submetem a condições desumanas como essa, e mesmo que não morram, ficam com sequelas. “No Brasil as mulheres continuam desesperadas atrás de estratégias de interrupção da gravidez. Esse não é um caso isolado. O aborto tardio é mais perigoso, os riscos que são intermediários até as 20 semanas, são muito maiores depois”.
Redes de mulheres que ajudam outras mulheres a realizar o chamado aborto medicamentoso em casa, com a utilização do misoprostol, tem diminuído a insegurança. O medicamento – considerado essencial pela OMS para uso em obstetrícia, porém com venda proibida no Brasil – é utilizado amplamente nos hospitais para aborto legal, parto antecipado e procedimentos pós-abortamento. “Não podemos deixar de dizer que parte dessa rede de apoio é composta por profissionais da saúde que consideram a criminalização uma violação de direitos”, destaca Sandra.
Legalização
Tania Slongo, da Frente Catarinense de Luta pela Descriminalização e Legalização do Aborto, assinala que o tabu do aborto interdita o debate na sociedade e pode impedir que a família da jovem conheça os motivos que levaram ao socorro médico tardio. “É assustador e muito solitário a mulher não ter direito a uma escolha segura em que pudesse não colocar em risco a própria vida. Morreu e agora está sendo apedrejada. Quanto vale a vida das mulheres? Não vale nada. Ela está sendo atacada por uma falsa moral. As mulheres morrem pela hipocrisia”, argumenta.
A Frente Catarinense pela Descriminalização e Legalização do Aborto será lançada em 5 de março, às 18h30, no Instituto Arco-Íris, centro de Florianópolis, com exibição do filme “Meu corpo, Minha Vida” e debate com a ginecologista Halana Faria, integrante do Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde, e a farmacêutica Clair Castilhos, secretária executiva de Rede Feminista de Saúde.
“Infelizmente quando a gente vê uma notícia dessas lembra que precisamos, cada vez mais, umas das outras, e de mais mulheres para engrossar as fileiras. O fato de estarmos mobilizando já é importante dentro do debate. Precisamos fortalecer a rede e chegar a um número maior de mulheres para que elas tenham uma compreensão e reação mais articulada”, defende Tania.
Paula Guimarães