Macri permitirá o debate no Congresso em meio a uma enorme pressão social para colocar o país na vanguarda da América Latina
(El País, 24/02/2018 – acesse no site de origem)
A sociedade argentina está mudando a uma velocidade imprevista. O casamento homossexual, impensável há alguns anos, quando sofreu a duríssima oposição do então cardeal Jorge Bergoglio, está absolutamente normalizado. O machismo que dominou esta sociedade durante anos agora parece em retrocesso, acuado pela onda social que levou às maciças mobilizações do Nem Uma a Menos, embora ainda hoje continue morrendo uma mulher a cada 30 horas por causa da violência de gênero. Agora parece chegada a vez do aborto, que abre caminho em meio a uma inusitada pressão social a favor da legalização nas primeiras 14 semanas, ao estilo do que acontece na maioria dos países europeus, mas não na América Latina, onde só o Uruguai o aprovou. A pressão é tão forte que o próprio Mauricio Macri, que sempre se declarou contra o aborto, instruiu sua equipe a permitir o debate no Congresso. A batalha está apenas no início, os deputados a favor ainda estão longe de ser maioria, mas o gesto de Macri surpreendeu a todos e abre caminho para um processo de final imprevisível.
“É uma grande vitória, resultado dos vários anos de luta para instalar o debate. Há possibilidades. Os deputados são muito permeáveis à opinião pública, devem a ela seus votos, e hoje ela é majoritariamente a favor da lei. Vamos tentar levar ao Congresso no dia 8. São feitos 500.000 abortos clandestinos por ano na Argentina, há garotas que vão para a cadeia por abortar, isso não dá mais”, diz a deputada Victoria Donda, de esquerda, filha de desaparecidos, que lidera o grupo promotor da reforma. Nas redes sociais e na rua, a mobilização no último mês surpreendeu a todos e continua crescendo.
Na Argentina o aborto é ilegal exceto em casos de estupro ou risco de vida para a mãe. Mas as argentinas encontram maneiras de abortar. Quem tem dinheiro para pagar o faz em clínicas com segurança, ainda que de forma clandestina. Quem não tem sofre com condições muito mais precárias, pondo a própria saúde em risco. “Na Argentina há 60.000 internações por ano devido a complicações derivadas de abortos. As pobres recorrem a talos de vegetais, agulhas, sondas, curetagens não controladas. A política de manter na clandestinidade foi nefasta. Proíbem-no, mas os abortos se multiplicam porque não se pode fazer política pública de prevenção na clandestinidade”, aponta o obstetra Mario Sebastiani, que há anos defende a legalização.
Ele também está convencido de que é possível conseguir. “Em 35 anos isso nunca tinha acontecido.” Não o esperaria de Macri, mas fala bem do presidente, que viu que há um movimento muito forte. “O exemplo é o Uruguai. Tem mortalidade zero. Mas não fazem em estrangeiros, exatamente para evitar que todos os argentinos ou brasileiros viagem para lá”, conclui. Enquanto na Argentina, onde é ilegal, estima-se que há 500.000 abortos por ano, na Espanha, com uma população similar e uma lei que o permite, há 94.000 e cai a cada ano, relembra o médico.
Ainda assim, a resistência é muito forte. A maioria dos ministros e as pessoas importantes do poder macrista se mostraram radicalmente contra o aborto. Alguns têm vínculos estreitos com a Igreja. “Para mim a vida é a partir do embrião e o Estado deve considerar que o direito à vida é o primeiro direito humano. Se defendemos isso em qualquer circunstância, e eu penso que aí há uma vida, preciso defendê-lo”, resume Gabriela Michetti, vice-presidente argentina e, como tal, presidente do Senado, aonde deveria chegar a reforma.
No interior é ainda mais difícil, especialmente nas províncias do empobrecido norte, as mais conservadoras. Seus senadores dificilmente o apoiarão. Em Tucumán, uma dessas províncias, ficou famoso o caso de Belén, uma jovem de 27 anos que passou mais de dois anos presa por abortar. Em agosto de 2017 foi finalmente absolvida pela Corte Suprema da província.
Celeste McDougall, uma das promotoras da campanha pelo direito ao aborto legal, seguro e gratuito está convencida de que chegou o momento. “Estamos tendo um nível de apoio e consenso social muito forte, estamos há 13 anos nisto. Em 6 de março apresentamos o projeto de lei e sabemos com certeza que 70 deputados o apoiam [o quorum para que possa ser discutido está em 129, por isso é decisiva a instrução de Macri para permitir o debate]. Até Cristina Kirchner disse agora que acha bom que seja debatido”, observa.
Durante anos, a oposição da ex-presidente, hoje senadora, foi determinante para que esse assunto não saísse adiante. Como acontece com muitos políticos, ela mesma admitiu que sua filha a pressiona a mudar de opinião. Há um salto geracional importante e, por isso, os promotores da campanha acreditam que poderá ser aprovada se houver suficiente impulso social. “É preciso pressionar mais do que nunca. A única garantia é continuar mobilizadas. Os deputados não podem mais fazer vista grossa. É uma grande dívida da democracia. Além do mais, se for aprovado na Argentina, haverá um efeito descomunal sobre os outros países latino-americanos, é uma onda que não se pode parar. Se olhar no mapa, 95% dos abortos de risco feitos no planeta são em países do terceiro mundo”, diz McDougall.
Todos temem a mobilização, muito mais silenciosa, dos que se opõem ao aborto, em especial a Igreja. A Argentina não deixa de ser o país do Papa. Alguns apontam, no entanto, que ele não mencionou o aborto em sua recente viagem ao Chile, onde acabava de ser aprovada uma lei que o despenaliza em três casos. “O Papa é argentino, mas vive em um país, Itália, onde o aborto é legal há vários anos, como em outros países europeus. Esperemos que não se meta”, sentencia Vicky Donda. A batalha será longa, mas, em 8 de março, dia da mulher trabalhadora, terá seu primeiro passo. Os votos desse dia mostrarão se realmente é possível um salto como esse, que colocaria a Argentina à frente da região.