A sociedade brasileira é marcada por diversas formas de desigualdades oriundas de construções históricas que sempre relegaram uma posição subalterna às mulheres, seja na política, na cultura, na economia, no mercado de trabalho etc. As desigualdades e discriminações de gênero se manifestam de várias formas que vão desde as diferenças de oportunidades e acesso a direitos até as formas extremas de violência, incluindo a morte. Assim, o feminicídio é a expressão extrema das diversas formas de violência que atingem as mulheres em nossa sociedade.
(G1, 08/03/2018 – acesse no site de origem)
Em 2015, por meio da sanção da lei 13.104, o feminicídio passou a fazer parte do ordenamento jurídico brasileiro. A lei qualifica como feminicídio os casos de mulheres mortas por razões da condição de sexo feminino (ou seja, no contexto de violência doméstica e familiar, ou casos de menosprezo e discriminação à condição de mulher). A nomeação específica para o homicídio de mulheres se justifica, segundo especialistas, pela necessidade de tornar visível esta forma de violência grave e historicamente recorrente em nosso país.
Entretanto, mesmo após três anos da implementação da lei, o crime de feminicídio ainda é bastante subnotificado. Para se ter a dimensão do problema, a equipe do G1 fez um levantamento sobre os assassinatos de mulheres em 2017 e conclui que, embora o número de mulheres vítimas de feminicídio tenha aumentado no país, seus registros seguem sendo pouco notificados. Ainda segundo o mesmo levantamento, em 2015, ano de sanção da lei, 11 estados não registravam casos de feminicídios e, em 2017, três estados ainda não tinham casos contabilizados.
Uma outra amostra do problema pode ser identificado nos dados do Monitor da Violência do G1. Durante a semana de 21 a 27 de agosto de 2017, dezenas de jornalistas do G1, situados de norte a sul do Brasil, se empenharam na difícil tarefa de registrar e contar a história de todas as mortes violentas que, naquele período, ocorreram no país . O levantamento registrou 1.195 vítimas de mortes violentas, que passaram então a ser acompanhados pelos jornalistas com o objetivo de relatar seus desdobramentos ao longo da investigação e processo. Dentre as vítimas, 126 eram mulheres (cerca de 10%) e, de acordo com os dados dos registros, 56% delas foram vítimas de homicídio, 20% cometeram suicídio, 16% foram vítimas de feminicídio, 2% de latrocínio e 6% tiveram registrada morte suspeita.
A princípio, o percentual de casos de feminicídios parece relativamente baixo quando comparado às outras tipificações. Entretanto, uma observação mais detalhada dos casos acompanhados indica a presença de subnotificação para este tipo de crime. Por um lado, os dados apontam a pouca efetividade das investigações e o baixo percentual de esclarecimento daquelas mortes, o que pode resultar em subnotificação de crimes desta natureza. Isto porque é preciso uma investigação conclusiva para que o feminicídio seja assim tipificado. Por outro lado, em alguns casos existe desconhecimento ou mesmo incompreensão das autoridades a respeito do feminicídio.
Ritmo lento e falta de prioridade
Nas mortes de autoria desconhecida (quando não há flagrante, testemunhas ou evidências óbvias), o ritmo lento das investigações e a falta de prioridade dificultam a elucidação dos crimes, o que por sua vez dificulta a identificação do feminicídio que pode acabar sendo registrado como um homicídio comum. Dentre as mortes acompanhadas pelo Monitor da Violência, passados seis meses das ocorrências registradas como homicídios, em quase 60% dos casos nenhum acusado havia sido preso ou denúncia apresentada pelo Ministério Público.
É o que aponta, por exemplo, a reportagem sobre a morte de Edna Aparecida Gmeiner, uma moradora de rua cujo corpo alvejado com 12 tiros foi encontrado em um matagal na cidade de Canoas, no Rio Grande do Sul. A morte de Edna é marcada por mistérios e as possibilidades vão desde acertos com tráfico de drogas até uma ação de um ex-companheiro contra quem já havia sido registrada denúncia. Entretanto, dada a lentidão das investigações, ainda não existem informações como motivação e autor do crime, elementos fundamentais para identificar um possível feminicídio.
Outra questão premente que leva à subnotificação é a própria resistência das autoridades policiais em registrar as mortes de mulheres como feminicídio, mesmo nos contextos em que a violência doméstica e familiar e o menosprezo pela condição da mulher são evidentes. Diversas histórias das mortes que são reconstruídas pelas reportagens do Monitor da Violência ilustram este problema.
São episódios que não foram registrados pela autoridade policial como feminicídio, embora as informações sobre o contexto indiquem que este seria o caso. Foi o que ocorreu com a tipificação da morte de Luciana Barbara da Silva Moura, de 35 anos, assassinada pelo companheiro dentro da casa em que moravam em Diadema, na Grande São Paulo. Embora o caso tivesse evidências claras de feminicídio, este não foi o entendimento da autoridade policial, que registrou a morte como homicídio qualificado por violência doméstica.
A Lei do Feminicídio foi uma importante conquista pois reconhece o problema, e este é o primeiro passo na direção de conhecer suas características e investir em políticas públicas que possam prevenir essas mortes. No entanto, é possível esperar que uma mudança normativa, por si só, possa surtir efeito de mudança esperado? Os dados apontam que ainda há muito que avançar para que os operadores do sistema de justiça criminal e gestores estejam preparados para lidar com a violência contra a mulher e reconhecer sua especificidade. Além da mudança nas leis é fundamental que haja uma mudança nas práticas destes operadores, desde o momento do registro até o processamento e julgamento dos casos.
Giane Silvestre e Ariadne Natal são pesquisadoras do NEV-USP