Uma proposta em aberto
(Folha de S.Paulo, 17/03/2018 – acesse no site de origem)
Entre os diversos matizes da dignidade da pessoa humana, que é um dos fundamentos da República, está o universo profundo e sensível da dignidade sexual. Há pouco tempo, a lei 12.015/2009 mudou radicalmente o título VI do Código Penal (“Dos crimes contra os costumes”) para indicar os ilícitos com adequada rubrica: “Dos crimes contra a dignidade social”.
As ofensas atingem ambos os sexos, mas a repulsa social ao estupro e outros graves ilícitos é intensificada quando as vítimas são mulheres, justificando a severidade das penas previstas.
Um homem foi preso em flagrante por ter ejaculado em uma passageira dentro de um ônibus em São Paulo. Foi solto no pressuposto de que a malsinada conduta caracterizaria simples contravenção, prevista no artigo 61 da LCP (Lei das Contravenções Penais) e punida somente com multa: “importunar alguém, em lugar público ou acessível ao público, de modo ofensivo ao pudor”.
O caso gerou imensa e compreensível reação social pela impunidade e reiteração da nefasta prática pelo mesmo sujeito, que aparenta ser mentalmente desequilibrado.
A Câmara dos Deputados aprovou o substitutivo ao projeto de lei nº 5.452-C/2016 do Senado Federal (PLS nº 68/2015), que prevê os delitos de importunação sexual e divulgação de cena de estupro.
A revogação do artigo 61 da LCP é clara evidência da neocriminalização, ou seja, a reação estatal que agrava hipóteses de infração penal já existente, amplia contornos típicos, aumenta penas ou reduz garantias do acusado. Esse é o perfil do proposto novo ilícito de importunação sexual, punível de um a cinco anos de reclusão, pela prática, “na presença de alguém e sem a sua anuência, [de] ato libidinoso, com o objetivo de satisfazer a própria lascívia ou a de terceiro”.
Apesar do louvável esforço do legislador e dos nobres movimentos de respeito à mulher, a norma incriminadora, tal como proposta, é uma caixa de Pandora que, aberta, espalhará diversos males de insegurança e terror.
Exemplos nos fazem refletir: (a) o sujeito frustrado poderá registrar, por vingança, um boletim de ocorrência contra a ex-namorada que, no cinema, beijava lascivamente um novo parceiro, pois não anuiu com aquele ato libidinoso; (b) no banco da praça onde descansa uma atenta senhora, um casal homossexual compartilha afagos, sendo, por isso, objeto de acusação de ato libidinoso público por parte dela.
Penso que o melhor caminho para suprir eventual lacuna normativa será a modificação do artigo 61 da LCP, assim: “importunar alguém, de modo ofensivo ao pudor, para satisfação da própria lascívia ou de terceiro”. Além de uma multa, deve ser cominada a reclusão, atendendo à proporcionalidade entre pecado e castigo.
Um grande avanço do “disegno di legge” [projeto de lei] é a criminalização da torpe propagação de cena de estupro, de sexo, nudez ou pornografia (art. 218-C) por inúmeros meios, a exemplo do WhatsApp. Mas é essencial aprimorar a redação do caput porque multiplica desnecessariamente os verbos típicos, caracterizando a “técnica de espingarda de cano cerrado” pela ampla dispersão do chumbo. É preciso, ainda, rever a conveniência de alguns outros tipos (218-D e 225).
O texto substitutivo ainda voltará ao Senado. Abre-se, então, a oportunidade para a revisão de vícios como o abusivo aumento de algumas penas e a falta de técnica de redação legislativa.
René Ariel Dotti é advogado e professor titular de direito penal, foi corredator do anteprojeto de reforma da Parte Geral do Código Penal (lei nº 7.209/1984)