Semana passada, nos dias 8 e 9 de março, as alunas do tradicional colégio Santo Inácio, no Rio de Janeiro, protestaram pelo direito de poder permanecer com a roupa da Educação Física depois da aula – opção essa que é concedida aos meninos. Atualmente, elas têm que tirar o shorts ao fim da aula, enquanto seus colegas do sexo masculino não precisam cumprir essa exigência.
(Emais, 15/03/2018 – acesse no site de origem)
O que se seguiu aos protestos das adolescentes foi, para variar, uma tentativa massiva de desqualificar as garotas e suas pautas para, assim, o mundo continuar girando em seu modo tradicionalmente machista. As “acusações” de quem leu as notícias foram as de serem meninas ricas, reclamando por causas pequenas em uma cidade à beira do colapso. Desocupadas, mimadas e sem vontade de lutar “pelo o que realmente importa”, o que quer que isso signifique.
Como era de se esperar, a escola recusou o diálogo e engrossou o coro de que o protesto era banal e contra uma tradição largamente aceita na instituição. Mas tanto os colegas homens quanto os pais e responsáveis apoiaram a reivindicação das jovens, o que os acusadores de internet escolhem ignorar.
As meninas são privilegiadas no contexto carioca e brasileiro? Sem a menor dúvida, só alguém de muita má-fé negaria isso. Mas isso faz com que elas não tenham o direito de se manifestar ou que suas reivindicações não possam ser levadas a sério? Também é preciso estar carregado de muita má-fé para responder que sim. Infelizmente, é o caso de muitos.
E o é porque as meninas, que gozam de privilégios de classe e raça (assumindo que a maioria das alunas de um colégio de elite ainda é branca), não escapam das desigualdades de gênero. E privilegiadas que são, podem mostrar isso. A saída, portanto, é desqualificá-las e tirar qualquer credibilidade do protesto. Só assim para o sistema não correr riscos.
Não esqueçamos que quando as meninas de Porto Alegre, também de colégio particular, reivindicaram o uso de shorts na escola ouviram que deveriam protestar por causas como educação de qualidade e presença de bibliotecas (estive em um debate com elas e vi essas afirmações de camarote). É um argumento que assume que só se pode reivindicar por uma coisa e que a causa escolhida (igualdade de gênero) não tem a ver com educação.
É um mero argumento para silenciar as mulheres desde o começo, ainda adolescentes. Se o desprezo com o argumento dessas meninas fosse apenas por elas serem privilegiadas economicamente, então os os secundaristas que pararam São Paulo em 2015 protestando contra a reorganização escolar promovida pelo governo do Estado não teriam sido taxados de baderneiros, invasores das próprias escolas e descompromissados. Beira a psicodelia argumentativa dizer que estudantes protestando para ficar na escola são jovens alienados.
A realidade é que contestar um sistema dominante incomoda. E quem está confortável nele (ou acha que está) vai usar de qualquer argumento disponível para desqualificar as ameaças, mesmo que esses argumentos não façam o menor sentido.
Para muita gente, os protestos que aqui são baderna, na França são sinais de civilidade. Para elas, a obrigatoriedade de burcas é um verdadeiro absurdo (ai se eu ganhasse um real para cada comentário do tipo que já ouvi), mas as meninas brasileiras serem obrigadas a trocar de roupa para não distrair os meninos é normal.
O que penso das meninas do Santo Inácio é que elas têm mesmo que lutar para melhorar suas realidades. E espero que no futuro lutem para mudar a dos outros também, pois são muitos os que não tiveram as mesmas oportunidades que elas. Mas nesse momento, nem toda a oportunidade do mundo as livrou do ódio de quem odeia ver as mulheres se movimentando.
Esse texto foi escrito antes do assassinato da vereadora Marielle Franco (PSOL-RJ), que em vida tanto lutou pelas mulheres, por negros e negras, pelo povo periférico, pela juventude e pelos LGBT. Fonte de inspiração para tantos e tantas, esse texto é dedicado a ela.