Pensamento permeia obras desde a década de 70
(O Globo, 17/04/2018 – acesse no site de origem)
Europa, 1968: enquanto muita gente ainda se esforçava para entender o que era a performance dentro do universo das artes visuais, a austríaca Valie Export apresentava nas ruas de várias cidades a obra “TAPP und TASTKINO”. Com uma caixa sobre o busto, ela permitia que as pessoas tocassem seus seios por 30 segundos. Rio de Janeiro, 2017: Ana Luisa Santos se posta diante do público que cruza o Largo da Carioca, usando apenas um vestido feito com notas de R$ 10 para a performance “Melindrosa”. Todas são arrancadas. Ela termina nua.
O trabalho de Valie foi um marco na história da performance, que estava se estabelecendo como gênero artístico naquele momento, sob uma forte carga de influência do feminismo. Junto a ela, Marina Abramovic, Gina Pane e Ana Mendieta — para citar as mais famosas — incluíam o corpo no processo artístico e colocavam em pauta as opressões sofridas pelas mulheres.
Cinquenta anos se passaram desde que a obra de Valie foi apresentada, e a conexão com “Melindrosa” de Ana Luisa é direta. O fio que liga as duas se ramifica pelo tempo, tocando também as criações de grandes artistas brasileiras, e mostra como as questões femininas ainda encontram na arte performática um importante espaço de manifestação.
— “Melindrosa” é um trabalho sobre o estupro e a relação dessa violência contra as mulheres, muito ligada à dimensão de posse do corpo feminino — explica Ana Luisa.
A ideia era propor ao público uma reflexão sobre a ética no olhar em torno do corpo da mulher. Durante a performance, conforme as pessoas perguntavam se podiam arrancar as notas, ela devolvia um questionamento: “você vai me deixar nua no meio da rua?” A resposta já sabemos.
— Tentei colocar ali uma presença muito altiva, mas sem ser agressiva. Essa troca viva que o estado performativo possibilita é muito interessante — relata Ana Luisa, que se deparou com as mais diversas reações, incluindo uma mulher que chorou e lhe deu um abraço. — Ela ficou tocada ao entender do que tratava o meu trabalho. Minha prática artística é um manifesto feminista. Mesmo quando não abordo a temática diretamente, minha presença provoca um debate sobre gênero.
O discurso da artista Berna Reale, mundialmente famosa por suas performances, aponta para direções semelhantes. Embora afirme que o feminismo não é o seu foco central, ela reconhece que é parte importante do repertório:
— Interesso-me pelo coletivo, pela maneira como a sociedade se comporta perante a violência e como a violência a permeia. Logo, o abuso e o assédio contra a mulher estão dentro disso.
“Rosa Púrpura”, na opinião dela, é um dos trabalhos que abordaram isso de maneira mais incisiva, do mesmo modo que “A frio”. No primeiro, Berna e um grupo de 50 mulheres vestindo saias pregueadas rosa e bocas que remetem a bonecas infláveis marcharam diante de uma banda em trajes militares, para falar sobre abuso e violência sexual. No segundo, a artista enxuga uma montanha de gelo, vestida apenas com uma capa, botas de plástico, luvas e fones de ouvido cor-de-rosa.
— “A frio” fala da violência silenciosa contra tudo o que é feminino. A violência que discrimina, diminui, fragiliza e coloca à margem — detalha.
As performances de Berna e Ana Luisa também têm a relevância de romper os limites institucionais da arte, outra conexão direta com as primeiras ações do gênero. Em boa parte dos trabalhos, elas estão na rua e levam seus questionamentos a um público além dos frequentadores de um museu ou uma galeria.
Essa lógica foi muito explorada pela carioca Márcia X, como lembra o professor Marcelo Campos, do Departamento de Teoria e História da Arte da Uerj. Ela fazia suas performances em eventos literários e espaços marginais ou alternativos, reforçando o caráter democratizante do gênero. Em um dos trabalhos mais célebres, “Ação de graças” (2001), Márcia apareceu deitada sobre uma grama, com os pés enfiados em dois galos, no Sérgio Porto.
Marcelo também observa que os discursos por trás das obras dessas artistas ao longo desses anos sempre foram indissociáveis do cenário político correspondente. E isso deixa tudo ainda mais expressivo:
— Na performance, tem-se como condição o corpo. Quem fala, reclama, denuncia e se manifesta faz isso com o próprio corpo. O resultado é uma identificação direta pelo público.
Nesse sentido, os impactos são profundos. O curador da Escola de Artes Visuais do Parque Lage, Ulisses Carrilho, considera que, na década de 70, as mulheres empreenderam um esforço coletivo sem precedentes na história da arte ao investirem em refazer a própria “imagem da mulher”.
— Historicamente tratadas pela cultura ocidental apenas como objeto de apreensão masculina, elas desconstruíram a imagem da mulher que serviu a artistas homens ao longo dos séculos como veículo para estereótipos, projeções, desejos e fantasias — destaca ele.
Pense em “Art must be Beautiful, artist must be Beautiful” (1975), em que Marina Abramovic escovava os cabelos à exaustão, e nas performances de Eleanor Antin, em que ela assumia diferentes personas, de uma enfermeira a um rei, para explorar a sua própria identidade.
Citando Anna Maria Maiolino e Lygia Clark entre nomes de destaque no Brasil, a artista Marcela Flósrido lembra que muitos desses trabalhos abordam questões sobre a identidade pessoal das autoras e a percepção do corpo na sociedade.
— Acredito que a pesquisa do “eu” seja um tema central na filosofia feminista. Portanto, diria que há feminismo nessas obras — comenta ela, que apresentou recentemente a exposição “Laços”, centrada na presença da mulher na arte contemporânea brasileira. — O fato de investigarem essas questões por meio da arte já é um grande movimento contrário ao que se espera da mulher. Elas não só desafiaram os modelos filosóficos vigentes, mas abriram espaço para novas concepções do que significa “ser mulher”.
Embora não sejam tratadas propriamente como performance, as obras de Laura Lima tangenciam essas questões ao inserir o corpo nos trabalhos. É o caso de “Dopada”, em que uma mulher dorme sob efeito de um sedativo, conectada à parede por um tubo de crochê. Ao definir que não será um homem ali, a artista invariavelmente propõe reflexões em torno do feminino.
— Não reduziria a minha obra a um sistema didático de como olhá-la, mas não posso me despir de uma condição histórica — diz ela, que também vê no fato de ser uma artista mulher algo muito simbólico. — Pontuar isso é um ativismo de que a mulher é uma pensadora.
Eduardo Vanini