Lei que prevê reparação imediata junto com a mastectomia completa cinco anos, mas o número de procedimentos não sofre alteração
(Emais, 24/04/2018 – acesse no site de origem)
A aposentada Jeane Roberto Vieira Gomes, de 53 anos, estava prestes a realizar o sonho de fazer a reconstrução mamária. Era 2016 e já fazia dez anos desde a mastectomia, procedimento para retirada da mama por conta de um câncer. “Fiquei super contente, divulguei para a família, estava feliz”, conta. Ela se internou, dormiu no hospital, ficou em jejum. No dia marcado, já no centro cirúrgico, veio a notícia: não teria cirurgia, pois não havia material necessário. “Parece que o chão abriu e eu caí”, lembra.
O caso de Jeane não é o primeiro e provavelmente não será o último de mulheres que são diagnosticadas com câncer de mama, tratadas no Sistema Único de Saúde (SUS) e precisam fazer a reconstrução do seio. Segundo a Sociedade Brasileira de Mastologia (SBM), das 92,5 mil mulheres que retiraram a mama entre 2008 e 2015, 20% (18 mil) fizeram a reconstrução pelo SUS.
Na teoria, nas ocasiões em que a mulher não pode fazer o procedimento de imediato, ela deve ser encaminhada para acompanhamento e ter garantida a realização da cirurgia após alcançar as condições clínicas necessárias, segundo informou em nota o Ministério da Saúde. Porém, a realidade é outra.
“O médico não me informou sobre a cirurgia reparadora, se eu podia fazer. Eu só vim saber disso bem depois, quando participei do Grupo de Mama [Renascer]”, disse Jeane, que fez todo o tratamento na rede pública de Maceió, capital de Alagoas. Ela afirma que não foi orientada pelo médico a procurar o serviço posteriormente nem sobre como poderia conseguir uma prótese externa.
Para determinar o momento em que a cirurgia de reconstrução deve ser feita – e reforçar a lei que prevê o direito do procedimento às mulheres atendidas pelo SUS -, o governo federal aprovou em 2013 a Lei 12.802 que completa cinco anos nesta terça-feira, 24. Com essa legislação, a paciente tem direito a reconstruir a mama no mesmo procedimento cirúrgico da mastectomia quando houver condições técnicas. Porém, o índice de procedimentos realizados ainda é baixo e quase não sofreu alteração desde que a lei entrou em vigor.
Segundo o Ministério da Saúde, foram realizadas 11.931 mastectomias e 3.411 reconstruções mamárias no SUS em 2013. Dados preliminares do ano passado mostram que pouco mudou: foram 10.186 mastectomias e 3.413 reconstruções. A pasta informa que a reparação é feita “com base em diversos fatores, como condição da área afetada, para evitar infecção ou rejeição da prótese, e a vontade da própria paciente”. Para especialistas da área, a reconstrução imediata é viável em 90% dos casos.
Uma pesquisa da Federação Brasileira de Instituições Filantrópicas de Apoio à Saúde da Mama (Femama) apontou que 53,2% das mulheres que fizeram o tratamento contra o câncer no sistema público de saúde realizaram a reconstrução mamária. Na rede privada, o porcentual sobe para 74,8%.
Parte da explicação estaria na falta de informação. “Uma das questões é que elas não sabem que tem essa lei, e os hospitais que têm mais dificuldades para fazer a reconstrução imediata não oferecem isso para a paciente”, diz Maira Caleffi, presidente voluntária da Femama. Ela observa também que quanto menor o nível educacional da mulher, menor o nível de conhecimento sobre seus direitos.
A pesquisa foi realizada em maio de 2016 com 468 mulheres que passaram pela mastectomia. Elas eram de sete Estados de todas as regiões do Brasil, a maioria tinha entre 35 e 54 anos e pertencia às classes B e C. Do total, 27,6% declararam conhecer bem a lei, enquanto 38,5% conhecem pouco e 3,8% nunca ouviram falar. Das que conhecem bem, a maioria (72%) fez reconstrução da mama.
Obstáculos. Entre os motivos apontados na pesquisa para não realizar a reparação do seio estão: ‘fila de espera’; ‘não sabe se tem direito’ e ‘não fez por recomendação médica’. Outros problemas relatados pelas mulheres ouvidas pelo E+ são a falta de profissionais ou material cirúrgico, que foi o caso de Jeane. “Ele não teve consideração por mim. Como vai fazer a cirurgia e só sabe que não tem material no dia?”, questiona.
Joana Jeker dos Anjos, de 41 anos, também enfrentou essa dificuldade. Diagnosticada com câncer de mama em 2007, ela fez o tratamento no Rio de Janeiro e as duas primeiras cirurgias de reconstrução (volume e simetria) no Hospital Regional da Asa Norte, na capital federal. Mas não foi possível fazer aréola e mamilo por falta de condições administrativas.
“As cirurgias do médico eram constantemente canceladas, porque faltavam dreno, fio de sutura, anestesista, instrumentador cirúrgico”, relata. Incentivada pelo médico a buscar seus direitos, ela fez um abaixo-assinado no início de 2010, com as mulheres que aguardavam a reconstrução, para ampliar o setor de cirurgias plásticas no hospital. No fim daquele ano, após ter conseguido finalizar o procedimento de reparação, ela organizou uma manifestação em frente à instituição, que teve grande repercussão na mídia local.
Por conta disso, a Sociedade Brasileira de Cirurgias Plásticas e a Secretaria de Saúde do DF se juntaram à causa para realizar o primeiro mutirão de reconstrução no distrito. Depois, Joana solicitou a uma deputada a criação de um projeto de lei para garantir a reconstrução de mama na rede pública do DF às mulheres que passaram por mastectomia. A lei foi aprovada e publicada no Diário Oficial em fevereiro de 2012.
Naquele ano, foi realizado o primeiro mutirão nacional decorrente da iniciativa local e Jeane quis se inscrever. Porém, por telefone, ela foi informada de que não teria direito, pois não havia retirado toda a mama. “Aquilo me deixou muito triste”. O próximo mutirão seria dali a quatro anos.
A funcionária pública Ademilda da Silva, de 58 anos, também de Maceió, se inscreveu em 2016, mas não foi sorteada. Ela fez a mastectomia em abril de 2013, um mês após a lei ser sancionada, e até agora espera na fila do SUS pelo procedimento. Antes disso, ela conta que teve de dormir nas filas dos hospitais para conseguir realizar os exames necessários para o diagnóstico do câncer, que só foi completado um ano após ela perceber o nódulo no seio. Ainda assim, teve de pagar R$ 380 na biópsia.
Autoestima. A presidente voluntária da Femama explica que a reconstrução mamária imediata é parte do tratamento, não apenas uma questão estética. Se a mulher faz a mastectomia e não reconstrói a mama antes da radioterapia, por exemplo, o tratamento vai dificultar a colocação do implante depois.
Além da saúde física, a mental é significativamente impactada. “A mulher não se sente com autoestima resgatada depois de um processo desse. O cabelo volta, mas se a gente não pensar nessa questão de imagem corporal, isso é deixado de lado”, diz Maira.
Na pesquisa da Femama, 43,6% das mulheres disseram que a cirurgia de reconstrução tem o benefício de fazer com que elas se sintam femininas novamente, e 27,6% declarou que o objetivo é diminuir a sensação de mutilação e amenizar a ausência da mama.
“Eu fico muito triste, o processo é doloroso, até hoje passo com psicóloga”, diz Adelmida. “Você é apontada como uma mulher sem mama, existe preconceito do câncer, uns olham com medo porque acham que é contagioso e com pena por ter perdido uma parte sensual da mulher. A dificuldade é muito grande”.
Para tentar amenizar todo o desconforto, a funcionária pública usa uma prótese externa que é colocada sob o sutiã, mas é menor do que seria ideal para ela. “Fica muito desproporcional”, diz. Fora isso, ela ainda sofre com dores nas costas pelo peso desequilibrado no corpo.
Joana, que criou em 2011 a Recomeçar – Associação de Mulheres Mastectomizadas de Brasília -, ficou dois anos e duas semanas sem a mama. Ela teve de adiar o procedimento de reconstrução após sofrer um acidente de moto depois da mastectomia. “Foi um período muito difícil para mim, me olhar no espelho sem uma das mamas foi bastante complicado”, diz. Por conta do tipo de mastectomia que fez, ela ficou com 70 centímetros de cicatriz, que ia do peito ao centro das costas.
Para cobrir a marca e recuperar a autoestima, ela optou por cobrir com uma tatuagem de laranjeira. “Essa tatuagem significou para mim um recomeço de vida. Depois que eu fiz a tatuagem, eu deixei totalmente o câncer para trás, passei a me olhar no espelho e ficar muito satisfeita com o que eu via”, declara.
Apesar das dificuldades, a aposentada Jeane tenta manter o otimismo. “Não me acho velha e a gente tenta não ficar triste. Esse problema das mamas me causa dor na coluna, que não tinha, tenho um lado penso, mas me sinto uma mulher mais fortalecida”, afirma.
SUS. Questionado sobre a demora para realização de exames e cirurgias pelo SUS, o Ministério da Saúde informou que “Estados e municípios possuem autonomia para organizar a rede de atenção oncológica, e o tempo para realizar diagnóstico depende da organização e regulação desses serviços”. A pasta afirma que “garante o repasse tanto para a mastectomia quanto para a reconstrução mamária”.
As mulheres de Maceió com quem o E+ conversou relatam falta de verba na capital para realizar os procedimentos. O ministério informou que, em Alagoas, foram realizados 17 procedimentos de reconstrução mamária em 2013 no valor de R$ 7,1 mil. Em 2017, foram 18 reconstruções no total de R$ 10,1 mil. “Vale ressaltar que o quantitativo produzido pelo Estado/município é de responsabilidade dos serviços locais”, disse a nota. Nacionalmente, a pasta disse que os investimentos federais passaram de R$ 2,21 milhões em 2013 para R$ 2,39 milhões no ano passado.
Ludimila Honorato