Qual a real dimensão da violência de gênero na USP?

24 de abril, 2018

Com frequência, a Universidade de São Paulo tem aparecido nas manchetes com denúncias de assédio e abuso sexual. As reportagens, no entanto, são geralmente focadas em institutos conhecidos por episódios de violência de gênero – como a Faculdade de Medicina – e exploram casos pontuais, deixando em segundo plano o contexto em que estão inseridos. A partir destas reportagens, de dados oficiais, depoimentos e relatos encontrados nas redes sociais, o Jornal do Campus tenta desenhar o panorama da violência de gênero na USP.

(Jornal do Campus, 24/04/2018 – acesse no site de origem)

(infográfico: Artur Zalewska)

Começamos a pesquisa no Google com a expressão “usp estupro”. Encontramos cerca de 130 casos nos últimos 5 anos, entre os campi da capital e do interior. Para o mesmo período, as estatísticas da Superintendência de Segurança da USP apontam somente 1 caso na Cidade Universitária. No chamado Quadrilátero da Saúde, que inclui a unidade campeã de ocorrências deste tipo, a Medicina, não há nenhum registro.

Dos casos reunidos pelo JC, 112 teriam ocorrido apenas na Faculdade de Medicina, segundo dados da CPI dos Trotes, concluída em 2015. Curiosidade sintomática do cenário, a página da FMUSP na Wikipedia aparece entre os resultados da busca “usp estupro”.

Ineficiência

O mergulho nas fontes evidenciou a ineficiência da USP em enfrentar a violência de gênero dentro das unidades. A burocracia é grande e há casos que sequer são levados adiante. Matéria d’O Estado de São Paulo de 2016 afirma que de 10 estupros denunciados à CPI, apenas três resultaram em abertura de sindicância.

Outra fonte consultada corrobora com o diagnóstico de ineficiência. O relatório da Comissão contra a Violência de Gênero do CRUSP concluiu que a Universidade é omissa e não investiga formalmente a maioria dos casos reportados ocorridos no conjunto residencial. Nos 10 anos anteriores ao relatório, 17 denúncias foram enviadas ao Serviço Social da Superintendência. Apenas três foram investigados.

O relatório também afirma que é “extremamente inverossímil que sejam 17 os casos reais de violência de gênero nos últimos 10 anos, dentre os cerca de 2200 moradores do Conjunto Residencial. Basta observar também que, quanto ao período requerido, não foi encaminhado nenhum atendimento referente aos anos de 2006, 2007, 2008, 2010 e 2013.”

Episódio representativo de como a USP se comporta é o do aluno de Medicina que, réu por estupro, foi impedido de se formar pela professora Maria Ivete Castro Boulos. Algum tempo depois, a professora foi afastada por e-mail da coordenadoria responsável por acolher vítimas de violência sexual. A USP, no entanto, afirma que os acontecimentos não têm relação entre si. O réu se formou no final de 2016, tendo sido o único dos acusados entre as 112 ocorrências da CPI a receber qualquer tipo de punição: suspensão de 180 dias.

Capricho pessoal

No último mês, em entrevista com a nova diretora da Escola Politécnica, Liedi Bernucci, revisitamos o caso de uma perseguição sofrida por uma aluna do instituto, noticiada em outubro passado pelo  JC. A estudante alega receber, há pelo menos 3 anos, mensagens diárias de conteúdo intimidador como “uma hora você vai ter que escolher entre me ajudar ou me prejudicar. Eu espero que você escolha me ajudar”.

As mensagens são disparadas de perfis falsos, provavelmente criados por uma pessoa com quem a estudante se envolveu por um breve período. O rapaz, que estudava para cursar Medicina, ingressou na Poli para se manter próximo da vítima. Ao procurar a diretoria para relatar sua história, a então vice-diretora Liedi a ofereceu uma escolta dentro da USP, que foi rejeitada pela estudante.

Quando o JC citou o caso na entrevista com Liedi, a diretora rebateu: “você sabe o que aconteceu? A gente sabe o que aconteceu, ela conta a história pela metade”, e então prosseguiu contando a mesma versão dada pela aluna. “Nós oferecemos uma escolta para ela! A gente ia pagar essa pessoa para acompanhá-la, e ela negou.” Sobre isso, a estudante explica: “não é disso que eu preciso. Eles têm que restringir ele, não a mim”.

A justificativa de Liedi para a falta de providências da Poli é a necessidade de um boletim de ocorrência. “Sem um b.o, a gente não pode fazer nada. Eu sempre me apoio na equipe jurídica para essas decisões”, afirmou a diretora. No entanto, a estudante já tinha, na época, dois boletins de ocorrência contra o acusado.

“Vocês sabem o que ela queria?”, nos questionou Liedi: “que a gente expulsasse ele! Nós vamos expulsar um aluno por um capricho pessoal dela?”

Após a publicação da reportagem no JC e posts da aluna no Facebook relatando a situação (que foram denunciados e excluídos pela rede social), o acusado recorreu à diretoria, que entendeu que a vítima estava “incitando a violência” contra ele. No final do ano passado, ela deixou a Poli e ingressou em outra unidade da USP, mas continua, até hoje, recebendo mensagens.

“Aqui tem muitos”

Em determinado momento da apuração, chegou a nosso conhecimento um caso de estupro que teria acontecido na EACH. Em busca de mais informações, contatamos uma fonte que, ao ser perguntada se sabia do ocorrido, respondeu: “mas qual estupro? Aqui na EACH tem muitos”.

A fonte completa dizendo que o Coletivo Feminista Maria Sem Vergonha elaborou uma “lista de abusadores”. A mobilização dessas entidades é de extrema importância para que os casos venham à tona. Nas redes sociais, elas ajudam na divulgação e viralização dos depoimentos de vítimas, produzindo manifestos de repúdio, e organizando eventos para debater a situação.

A página Rede Não Cala USP é uma das mais ativas. Só neste ano, promoveu e divulgou, através do Facebook, quatro eventos sobre questões de gênero. O grupo é formado por professoras e pesquisadoras da Universidade.

Incontáveis casos

Em praticamente todos os casos de estupro e outras violências na USP, as vítimas são desencorajadas a reportá-los aos órgãos competentes.

Matéria do UOL de 2014 traz o depoimento de uma aluna estuprada durante uma festa. Ela afirma que queriam “abafar o caso”, porque poderia haver consequências para a Atlética da FMUSP, organizadora do evento. Além disso, os membros da entidade ainda disseram que ela não conseguiria provar o crime e que a vítima tinha uma parcela de culpa por estar bêbada.

Outra estudante, em entrevista ao G1, diz sofrer preconceito de seus colegas após denunciar um caso de estupro. “Você vê um olhar [das pessoas] que já deixou de ser de dúvida e já é um olhar de desaprovação. Porque eles me tomaram como o motivo da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto estar sendo alvo nessa CPI. É você, porque você foi lá e abriu a sua boca”, afirma.

Na FFLCH, uma aluna do curso de Geografia foi perseguida e ameaçada durante quatro meses por bilhetes anônimos, até sofrer tentativa de estupro em seu carro. Um ano depois, voltou a ser ameaçada.

Em 2015, o blog “Tio Astolfo”, que se diz “em prol da filosofia do estupro”, publicou um texto, voltado para alunos da Poli, em que apresenta um guia para estuprar alunas da FFLCH.

Também segundo o UOL, 46% dos alunos da USP conhecem casos de abuso sexual.

FAU, POLI e a equipe jurídica

Durante a Semana dos Bichos deste ano, entre 26 de fevereiro e 2 de março, uma aluna procurou o coletivo feminista da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo alegando que havia sido estuprada nas imediações do instituto durante um happy hour organizado pela Atlética. O acusado é um intercambista francês, estudante da Poli, mesma unidade de origem da vítima.

Segundo o regimento interno da USP, apesar de o caso ter acontecido na FAU, ele deve ser reportado ao instituto de origem do agressor. Uma fonte garantiu ao JC que a diretoria da Poli está ciente do caso.

A reportagem entrou em contato com a equipe jurídica da unidade, a quem a diretora indica recorrer em situações como esta. No entanto, a tal “equipe” não existe. Ela é, na verdade, a Procuradoria Geral da USP.

A Procuradoria afirmou que procuradores são designados por unidade, e que não poderiam indicar um para falar com o JC.

As alunas da FAU fizeram um protesto assim que o caso veio à tona, colando cartazes por toda a unidade contra a cultura do estupro na USP. Também redigiram manifesto assinado por diversas entidades do instituto cobrando um posicionamento oficial da diretoria da FAU.

Protesto de alunas na FAU. (foto: Matheus Morgado)

Protesto de alunas na FAU. (foto: Matheus Morgado)

 Matheus Morgado

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