A professora Katemari Rosa ainda se lembra de um dia em que esperava o ônibus até a Universidade Federal de Campina Grande (PB), onde lecionava física. Já era formada em física pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), com mestrado em Filosofia da Ciência na Universidade Federal da Bahia (UFBA) e doutorado em Ensino de Ciências na Universidade Columbia, nos EUA. No ponto do ônibus, aguardavam alunos, técnicos e funcionários da universidade. Ela avisou a uma moça que o transporte estava chegando, e a moça perguntou o que ela fazia. Katemari respondeu que era professora.
(BBC Brasil, 10/05/2018 – acesse no site de origem)
“Quando eu disse que era professora, ela perguntou: ‘Professora de estudos africanos, não é?’.” Katemari é negra.
“Ela não só demorou a acreditar que eu era professora universitária, mas também, quando eu disse o que fazia, imediatamente me colocou no meu lugar. Uma mulher como eu só podia ser, claro, professora de estudos africanos”, analisa, alertando para uma forma de racismo que muitas vezes a sociedade demora a identificar: reservar ao negro apenas o lugar para falar de africanidades, negritude, África, preconceito e temáticas afins.
“Digo aos estudantes: o negro não tem que ir para os espaços para falar só sobre raça. Acho ótimo falar disso, mas penso que é preciso ver pessoas negras falando de tudo, matemática, português, direito, ciência, física de partículas. Quando a menina disse: ‘você é professora de estudos africanos’, tenho certeza que não falou por mal nem com intenção de ofender ou ser racista. Falou porque é a construção que a gente tem, é essa inferência. Se está ali como professora, só pode estar falando de africanidades”, analisa.
Katemari se incomodou com a pergunta da moça, mas acabou não respondendo. Era como se uma mulher negra não pudesse fazer o que ela fazia. “Física? Não é um espaço pra mim, o negro pensa. Várias vezes me confundiram”, conta.
Ao longo da vida acadêmica, o incômodo apareceu outras vezes, como num dia em que estava sentada sozinha na mesa de sua sala, com seu nome escrito na porta. Uma moça entrou e pediu para chamar a professora Katemari. “De novo, mesmo meu nome estando na porta, foi difícil ela acreditar que a professora era eu.”
O desconforto fez com que Katemari se dedicasse a pesquisar trajetórias e vivências de pesquisadoras negras. “Fui procurar uma especialista em gênero aqui no Brasil e ela me perguntou: ‘Mas por que estudar isso? Por que não só mulheres? Mulheres negras são um tema muito complicado, você não vai conseguir.’ Ela me disse que eram categorias diferentes, que eu não podia analisar isso.”
Sua tese de doutorado, defendida nos EUA, é sobre mulheres negras na física. Uma das dificuldades à época, relembra, foi obter dados sobre raça das cientistas brasileiras, o que a levou a focar a pesquisa nas americanas. Só em 2013 o CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) passou a indagar aos pesquisadores brasileiros sobre cor ou raça.
“Lembro que houve grande crítica por pedirem esse dado. E era algo interno, não um dado público, então, era difícil saber”, afirma.
Banco de dados de cientistas negros
Especialista em ensino de física e filosofia das ciências, Katemari incorporou de vez o tema da questão racial a seus interesses e conduz, desde 2015, o projeto de história oral “Contando Nossa História: Negras e Negros nas Ciências, Tecnologias e Engenharias no Brasil”.
Financiada pelo CNPq, a iniciativa pretende recuperar trajetórias e criar um inédito banco de dados aberto ao público com a história desses cientistas. “A gente não tinha isso, não se falava de negros na física. Aqui em Salvador, a cidade mais negra do país, a gente não falava sobre isso”, afirma.
Ao saber do projeto, estudantes de diferentes partes do país a procuraram, interessados em participar. No Tocantins, uma moça pediu que orientasse seu trabalho sobre biólogas negras, diante da dificuldade de achar alguém que se interessasse em acompanhá-la. Um desinteresse que, como no caso do estranhamento ao ver uma mulher negra professora, é sinal do que Katemari, hoje, aos 39 anos, identifica como racismo estrutural, mas que muitas vezes demorou a reconhecer.
“A gente experimenta o racismo porque ele é estrutural no nosso país. Você pode não reconhecer em alguns momentos, mas não tem como não viver. O fato de você ser o único negro em alguns ambientes é manifestação de racismo estrutural, porque faz com que aquele ambiente seja destinado majoritariamente para brancos. É preciso ter uma consciência em relação a essas coisas para identificar”, argumenta.
“Tem um conceito do Derrick Bell (um dos primeiros professores negros de direito em Harvard, nos anos 70) de que eu gosto muito, que é mostrar como é difícil para uma pessoa negra admitir que alguma coisa foi fruto da discriminação racial. Admitir é entender que o outro pensa menos de você, que você é menos gente, é algo que é doloroso reconhecer. Há resistência em atribuir ao racismo essas sensações que acontecem na vida. Certamente passei por situações que eram preconceito racial e não atribuí a isso.”
‘Decifrar o quebra-cabeças’
Oriunda de uma família de classe média baixa, aluna da escola pública, criada só pela mãe, Katemari é professora-adjunta do Instituto de Física da UFBA e tornou-se um nome de referência contra a invisibilidade de negros na pesquisa acadêmica.
Em janeiro de 2017, foi uma das organizadoras do 1º Encontro de Negras e Negros na Física, dentro dos debates do Simpósio Nacional de Ensino de Física, ocorrido no campus da USP em São Carlos.
A professora também participou do Diálogo Elas nas Exatas, realizado no Rio em março deste ano por organizações como Fundo ELAS, Instituto Unibanco, Fundação Carlos Chagas e ONU Mulheres. É uma das pesquisadoras chamadas pelo CNPq a escrever, para a próxima edição do projeto Pioneiras das Ciências, verbetes sobre cientistas negras.
Outras iniciativas nesse sentido vêm sendo conduzidas pela Associação Brasileira de Pesquisadores Negros (ABPN), criada em 2000 com o intuito de organizar encontros e publicações com foco em pesquisas produzidas por negros ou voltadas para a temática.
“A gente tem que falar da representatividade negra e falar de outras coisas. Meu próximo artigo acadêmico será sobre eletromagnetismo”, afirma ela, que leciona sobre como compreender conceitos da física à luz da filosofia.
Apaixonada por física – (“Apesar das aulas terríveis do ensino médio”, brinca -, Katemari diz que se interessou pela área desde criança, quando passava horas observando o céu e dizia que seria astrofísica. A escola técnica onde estudou, hoje IFRS (Instituto Federal do Rio Grande do Sul), ficava ao lado do planetário da UFRGS. Ela perdeu a conta de a quantas sessões assistiu.
“Física é emocionante. Eu gostava de entender as coisas acontecendo, gostava de quando eu conseguia decifrar o quebra-cabeças. Minha conexão com a física é pelo desafio”, afirma.
Em sala de aula, uma de suas preocupações é trabalhar no que hoje se chama de “descolonização” do ensino, com uma proposta que traga novos conceitos, saberes e escolas. Nessa batalha, Katemari diz que é preciso pensar numa outra ordem para fazer diferente.
“Temos que produzir uma ciência que seja para viver de forma mais harmônica com a natureza, que não seja de exploração. A gente desconsidera conhecimentos produzidos pela Ásia e pela África. Não quero ensinar uma ciência que coloque a centralidade do conhecimento como sendo apenas feito por europeus e homens.”
E a astrofísica, pergunta a BBC Brasil? Katemari achou chatíssima. Preferiu a filosofia e a busca por outras estrelas – negros e negras que brilham nas ciências.
Fernanda da Escóssia