Acusações de agressão contra juiz incluem violência sexual contra a ex-esposa, crime desconsiderado por advogado de defesa
(Nexo, 15/05/2018 – acesse no site de origem)
O juiz e ex-presidente da Corte Interamericana de Direitos Humanos, Roberto Caldas, foi acusado pela ex-esposa, Michella Marys, de espancamento, ameaça de morte e estupro. As acusações foram divulgadas primeiro pela revista Veja.
Segundo Marys, as agressões aconteceram ao longo de 13 anos, inclusive durante uma gravidez.
Além da denúncia de violência doméstica, pela qual Caldas responde legalmente, ele também é acusado de assediar sexualmente funcionárias do casal.
Caldas foi afastado do cargo na Corte Interamericana e seu nome foi retirado do escritório Roberto Caldas, Mauro Menezes & Advogados, em que atuou por mais de 30 anos em causas trabalhistas e ligadas aos direitos humanos.
Defesa
Em entrevista ao jornal O Globo, o então advogado de defesa Antônio Carlos de Almeida Castro, conhecido como Kakay, disse que Caldas nega as agressões físicas contra Marys, mas admite violência verbal.
Áudios de agressões foram apresentados à Delegacia da Mulher por Marys e tornados públicos pelo site Metrópoles.
Em uma outra reportagem do Globo, publicada na segunda-feira (14), Kakay negou que seu cliente tenha estuprado a ex-esposa.
“Ela fala que acordava com ele a penetrando. Para mim isso está longe de qualquer definição de estupro”, disse o advogado. “Isso não é estupro. Quem já foi casado razoavelmente sabe que não é estupro.”
Em um questionário preenchido por Michella Marys, com o objetivo de garantir medidas protetivas na Justiça, a pergunta “O autor já obrigou você a fazer sexo ou praticar atos sexuais sem sua vontade?” foi respondida com um “x” no campo “mais de uma vez”.
“Várias vezes acordei no meio da noite com ele me penetrando. Às vezes, eu tomava remédio forte para dormir e tinha sono pesado. Achava isso uma violência, mas não sabia que era estupro. Chegou um momento em que eu não conseguia mais dormir à noite”, disse Marys, em entrevista ao Globo.
Ainda na segunda-feira, depois das declarações, Kakay deixou a defesa de Caldas.
Estupro marital na lei
Até 2005, esteve em vigor no Código Penal brasileiro (de 1940) uma previsão que extinguia a punibilidade do crime de estupro “pelo casamento do agente com a vítima”.
No código, o estupro estava no rol de “crimes contra os costumes”. Os dois incisos que extinguiam a punibilidade foram revogados pela lei 11.106, em 2005. Em outras palavras, a possibilidade de que um estuprador não fosse punido por casar-se com a vítima deixou de existir.
Segundo a professora de direito penal do curso de Direito da FGV de São Paulo, Maíra Zapater, uma interpretação do Código Civil de 1916 também legitimou, ao longo de quase todo o século 20 no Brasil, a não punição do estuprador casado com a vítima. Ainda que com alterações, o código ainda está em vigor.
De acordo com Zapater, o posicionamento defendido pelo Poder Judiciário e autores do direito penal a partir do código era que “se homens e mulheres têm o direito de exigir sexo do seu parceiro, quando o marido exige isso da mulher, mesmo que seja à força, ele não pratica crime, porque aquilo que a gente exerce como um direito não é considerado crime”.
Essa linha interpretativa só começou a mudar depois da Constituição de 1988, com a formulação da igualdade entre homens e mulheres em direitos e obrigações.
Interpretação
Embora, na lei atual, o estupro no contexto conjugal deva ser processado em caso de denúncia, há uma disputa de interpretação em torno do que caracteriza o tipo penal de estupro, esclarece Isabela Guimarães Del Monde, cofundadora da Rede Feminista de Juristas, em entrevista ao Nexo.
Segundo ela, parte dos juristas entendem que, para configurar estupro, precisa haver ameaça ou grave violência. Já na advocacia feminista, costuma-se defender que qualquer ato sexual cometido sem o consentimento da mulher é estupro.
No artigo 213 do Código Penal, a definição dada para o crime de estupro é a de “constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso”.
A violência sexual também está incluída na Lei Maria da Penha, de combate à violência doméstica. Nela, é “entendida como qualquer conduta que a constranja a presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada, mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força”.
Citando a fala de Kakay de que a penetração da vítima que dormia “está longe de qualquer definição de estupro”, Del Monde afirma que “nós – eu, Isabela, e a Rede Feminista de Juristas – defendemos que isso é indiscutivelmente estupro. A partir do momento em que a mulher não pôde exercer a sua expressa vontade de realizar aquela relação, estamos diante de um caso de estupro”.
“Compreendemos que a violência está no ato em si, de um homem realizar uma relação sexual com uma mulher inconsciente. A violência é, justamente, a relação não consentida, e não a forma como a relação não consentida aconteceu”, disse Del Monde ao Nexo.
Entendimento
Para a professora da FGV Maíra Zapater, o reconhecimento do estupro marital ainda não é unânime por operadores do direito por ser uma ideia muito recente.
“Nos anos 1990, a gente ainda estudava que se o marido não usasse força além da necessária [para forçar o ato sexual], não era estupro”, disse Zapater ao Nexo. “Se a gente não levar essa discussão para o judiciário, falar que o mundo mudou, o pensamento não vai mudar.”
Na avaliação da cofundadora da Rede Feminista de Juristas, Isabela Guimarães Del Monde, o ex-advogado do caso de Roberto Caldas, Kakay, “estava diante de um caso complicado em que ele precisava agir nos seus melhores esforços técnicos para a defesa do cliente”.
“Mas não se pode utilizar de teses falaciosas, de falas machistas ou discriminatórias para conduzir sua defesa. A linha de defesa que ele estava mostrando que ia seguir era de descredibilizar a Michella e essa linha é muito comum. Vemos inclusive decisões judiciais que reforçam esse tipo de entendimento.”
Isabela Guimarães Del Monde, Rede Feminista de Juristas
Além disso, Del Monde chama atenção para o fato de que o advogado não disse que não existe estupro no contexto conjugal. “A frase dele tem aquele sentido de que todo mundo sabe que, num casamento, depois de muito tempo, o homem tem que insistir. É uma fala que claramente naturaliza a violência sexual dentro de um relacionamento.”.
Maíra Zapater também adverte que é preciso ter cuidado para não demonizar a defesa. “Por outro lado, também é preocupante se fazer uso de um discurso que pode ser considerado misógino para isso”, disse.
Para além da visão do judiciário, há também uma dificuldade geral em reconhecer o estupro no casamento como tal.
As razões para esse estranhamento de que o crime esteja presente no contexto conjugal, segundo Isabela Del Monde, têm a ver, em primeira instância, com estereótipos de gênero e formas de relação sedimentadas em ideias patriarcais, de que a mulher “é uma propriedade, um objeto, e que a prática de relações sexuais está nos deveres conjugais”.
“A origem da dificuldade das pessoas compreenderem que isso acontece é porque, antes, não tínhamos a noção de que a mulher verbalizar ‘não quero’ e o homem insistir era uma prática violenta. A gente tinha isso como um dado, como uma forma de se relacionar”, disse. “Há toda uma narrativa que sustenta a nossa dificuldade de percepção desse tipo de crime e de vários outros tipos de violência baseada em gênero.”
Também atrapalha, segundo ela, a noção cristalizada (e equivocada) de que o estupro acontece em um beco quando uma mulher anda na rua à noite, sozinha, cometido por um desconhecido.
“Construímos um tipo de criminoso, de estuprador, e, enquanto sociedade, temos dificuldade de aceitar que o estuprador é o cara que joga futebol com você, o amigo que se formou com você, o seu colega de trabalho com quem você almoça. Na mitologia, o estuprador tem outra cara”, disse Del Monde.
Juliana Domingos de Lima