Profissional teria sugerido em sala que alunos treinassem toque retal em colega homossexual
(O Globo, 30/05/2018 – acesse no site de origem)
A Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio) abriu sindicância para apurar denúncia de homofobia envolvendo um professor da Faculdade de Medicina. O docente está sendo acusado por alunos do 4º período do curso de ter sugerido, diante de uma turma de aproximadamente 40 estudantes, que treinassem toque retal — exame comum em diagnósticos de doenças na próstata — em um colega assumidamente homossexual. O jovem citado, no entanto, não estava presente no momento da insinuação. O episódio ocorreu há uma semana, durante uma aula da disciplina semiologia médica, na Escola de Medicina e Cirurgia da Unirio, localizada no bairro do Maracanã, Zona Norte do Rio. De acordo com a universidade, o objetivo da sindicância é apurar possíveis irregularidades cometidas pelo profissional.
Ao tomar conhecimento do ataque que havia sofrido, o estudante X., de 20 anos, publicou mensagem numa rede social, em um grupo da faculdade, relatando o episódio. Das 1.500 pessoas que têm acesso à postagem, pelo menos 500 se manifestaram, em apoio ao jovem. Ao perceber a comoção dos colegas, o aluno resolveu procurar um advogado e levar o caso ao conhecimento da direção do curso e do Ministério Público Federal (MPF). Nesta quarta-feira, o Diretório Acadêmico da Unirio confirmou a abertura da sindicância, protocolada pela Escola de Medicina junto à Decania do Centro de Ciências Biológicas e da Saúde.
— Eu nem estava na sala, e ele falou que a turma toda deveria treinar comigo a “dedada” (exame de toque retal). Ele também disse que o representante de sala serve para essas coisas. As pessoas me mandaram mensagens para contar o que tinha acontecido, e eu nem consegui pensar direito, só comecei a tremer — relembra o estudante.
Antes de compartilhar sua revolta na internet, o universitário chegou a pensar na repercussão do caso e no impacto que ela teria na vida do professor. Porém, um novo relato ofensivo o fez decidir pela publicação:
— Antes de publicar o texto, pensei em como isso poderia afetar a carreira dele. Logo depois, eu me lembrei de outros absurdos. Soube que, ao fim daquela aula, um outro aluno da turma foi até ele para pedir um arquivo, com slides da matéria ensinada, e ouviu como resposta: “Você veio treinar o exame no lugar do seu amiguinho?”. Coincidentemente ou não, esse aluno também é gay.
HOSPITAL É REFERÊNCIA NO TRATAMENTO DE HIV E AIDS
Outro aluno homossexual do 4º período de medicina também diz ter sido vítima de homofobia, praticada pelo mesmo professor. O jovem de 21 anos, que prefere não ser identificado, diz que chegou a pensar em desistir do curso depois de ouvir que um trabalho acadêmico estava “pior que a própria bundinha” e que “não servia nem para limpar a bunda”. Antes disso, o estudante já estava ressentido pela maneira como o profissional se referia a pacientes soropositivos:
— No 2º período, o mesmo professor se referiu aos pacientes como “aidéticos”, e eu vi que ele não tinha sensibilidade para lidar com esse grupo. Ele é um médico que trabalha em um hospital de referência no assunto, e não deveria utilizar uma expressão que reforça estigmas.
O título de referência no tratamento da doença citado pelo estudante foi concedido ao Hospital Universitário Gaffrée e Guinle pelos Ministérios da Saúde, da Previdência e Assistência Social, da Educação e do Trabalho em outubro de 1987 e ratificado em 1993. O professor em questão atua diretamente nessa área, e chegou a se formar na própria Unirio, em 2005, apresentando um trabalho de conclusão de curso relacionado ao tema.
Segundo o aluno de medicina, o professor já teria feito comentários vexatórios em relação a ele, diante de uma paciente do hospital universitário.
— Eu e duas amigas estávamos cuidando de uma senhora de 80 anos, que não gostava de ser examinada por homens. Mesmo assim, consegui conquistar sua confiança. Esse professor chegou e disse que não tínhamos cumprido parte do procedimento e nos chamou de volta à sala. Ele levantou a blusa da senhora que, tímida, pediu que ele não fizesse aquilo na frente de um menino. O professor olhou pra mim e disse que eu não faria nenhum mal por “não gostar da fruta” e ainda me disse: “Vem cá apalpar a coroa”.
Para a universitária Nayara Lamanna, que está no 10º período de medicina e é coordenadora geral do Centro Acadêmico Benjamin Baptista, os relatos dos alunos refletem uma falta de preparo pedagógico dos professores da Unirio para lidar com as situações relacionadas à sexualidade:
— Esse professor se especializou no atendimento a pacientes com HIV, num hospital de referência. Os relatos mostram que os episódios acontecem com todo mundo, de alunos a pacientes. Além de ser pejorativo, o termo “aidético” é tecnicamente errado, porque nem todo soropositivo tem Aids. Além de médico, ele é um profissional que trata diariamente dessa questão. Uma atitude como essa causa um mal-estar geral.
ADVOGADO RECORRERÁ AO MPF
Para cobrar uma posição da Unirio, os dois alunos homossexuais e o Diretório Acadêmico Benjamin Baptista procuraram a ajuda do advogado Rosinaldo Lobato Júnior para pedir à universidade que afaste o professor das aulas e o obrigue a pedir desculpas públicas ao aluno mencionado em sala. Para o advogado, a questão não pode ser ignorada pela instituição e, por isso, ele entrará com uma representação no MPF pedindo que procuradores acompanhem o processo administrativo contra o educador. Lobato também afirma que alunos relataram uma possível intimidação por parte de funcionários, que teriam alegado que uma possível ação contra o professor poderia “acabar com as carreiras dos jovens”. Nesse caso, ainda segundo o advogado, a representação do MPF daria à Unirio a chance de tomar as próprias medidas administrativas diante do comportamento do professor. Ao ser questionada sobre o pedido de afastamento do professor, o universidade informou que ele permanece à frente de suas funções.
— Ouvi os relatos do meu cliente e de vários outros alunos. Entendi que essa não é só uma história de homofobia, mas de abuso de poder disciplinar. Algumas pessoas largaram a faculdade e uma tem laudo psiquiátrico dizendo que tem problemas e que o professor piorou a situação. Isso demonstra que o meu cliente é uma pessoa em meio a tantas da Unirio que estão passando por isso — defende Lobato. — Os casos não podem ser enquadrados na teoria jurídica do “mero aborrecimento”, como algo comum à convivência humana. Diante dos elementos, fica claro que os alunos estão passando por situações extremamente abusivas. São alunos que sonharam em cursar medicina, passam por uma pressão absurda e chegam a pensar em abandonar o curso muito perto de alcançar seus objetivo.
Para o aluno X, essa é uma oportunidade que a Unirio tem para promover uma mudança expressiva em seu quadro de profissionais:
— A direção do curso tentou me convencer que o professor é um médico competente e que já passou por muitas coisas na vida, e que ele se espelha no modelo de um professor que teve no passado. Também passei por muita coisa na vida, só que por conta da minha sexualidade. Já apanhei na rua duas vezes por estar demonstrando afeto — relembra o aluno. — Sempre me cobrei muito e por isso sou tão estudioso. Isso tudo criou uma barreira que me protege, mas eu penso em todos que já passaram por isso. Não quero que mais ninguém passe por isso. Eu não dormi na última quarta-feira porque não conseguia parar de pensar nisso. Se eu estivesse na sala de aula, teria feito um escândalo sem pensar em represálias
Procurado pelo GLOBO, o professor acusado preferiu responder por e-mail. Ele disse que não teve a intenção de ofender o aluno. O médico acrescentou que os relatos sobre a sua conduta em sala de aula foram tirados de contexto e ressaltou a própria experiência no tratamento de pacientes soropositivos.
— Acredito que tudo não passou de um mal-entendido, e em nenhum momento eu quis ofender alguém. Além do mais, o aluno sequer se encontrava presente no momento. Lamento que ele se sinta na condição de ofendido. Nunca tomei conhecimento da opção sexual dele. Já os comentários despendidos em sala de aula faziam parte de um contexto que infelizmente foi desvirtuado, e em nenhum momento tive a intenção de ofender a quem quer que fosse — defendeu-se o professor, ao fazer referência à utilização do termo “aidético”. — Importante destacar que nunca me referi aos pacientes de forma pejorativa, sou médico há 13 anos e há oito professor de medicina, com experiência em tratamento de pacientes soropositivos. Estou à disposição do aluno para esclarecer quaisquer maus entendidos.
O professor informou que já entrou em contato com uma advogada para tratar do caso. A reitoria da Unirio afirmou que está acompanhando a situação desde a semana passada, e prometeu que fará o possível para que os estudantes encontrem na faculdade um ambiente cada vez mais respeitoso e acolhedor às diferenças, respeitando a dinâmica dos processos administrativos da instituição.
João Paulo Saconi, estagiário sob supervisão de Carla Rocha