Ela foi diagnosticada com “transexualismo” e batalha na Justiça para voltar a cumprir suas funções: “Esta revolução que está acontecendo não começou com a Bruna e não termina agora.”
(HuffPost Brasil, 08/06/2018 – acesse no site de origem)
Quem conhece Bruna Benevides, 39, não consegue pensar em outra coisa que não seja “que mulherão!”, é inevitável. Mas a admiração inicial pela altura, beleza e postura da cearense dura apenas poucos minutos. É que quando ela começa a falar, sua voz preenche a sala, seu carisma toma a atenção de quem a ouve e a admiração multiplica. Não tem outro jeito. A fala calma e direta, porém firme, expõe que a interlocutora é alguém que já sofreu inúmeras violências durante a vida, mas encontrou na liberdade e no amor a resiliência necessária para continuar. Bruna é a Segundo-Sargento da Marinha do Brasil, e há 21 anos ingressou na carreira militar. Uma trajetória comum, mas cercada pela transfobia.
Nascida no Ceará, Bruna chegou ao Rio de Janeiro aos 17 anos, após uma adolescência marcada por violências. Foi no concurso para a Escola de Aprendizes da Marinha que ela encontrou uma chance de estar livre. “Eu via muitas novelas, aquela liberdade que a gente acredita que aqui [no Rio] tem. Então eu cresci com essa ideia de morar no Rio de Janeiro. As pessoas trans não se evadem, são excluídas. Então dentro desse processo de exclusão, de uma adolescência incompreendida, eu vim”, conta em entrevista ao HuffPost Brasil.
“Nesse processo eu realmente abri mão de ser quem eu realmente sou, e foi por sobrevivência.”
E ela chegou sem família, com poucos conhecidos e com uma vida inteira pela frente, muito além dos 35 anos — que é a média de expectativa de vida de pessoas trans no Brasil. Amadurecida pelas exclusões que sofreu, construiu uma nova vida na cidade vizinha, Niterói, e hoje é militante pela causa trans. Mas até ser a Bruna altiva e reconhecida entre seus pares, ela sofreu em silêncio dentro da carreira militar desde o início.
“Naquele momento eu decidi que iria abrir mão de quem eu era pra tentar construir uma história diferente. Eu me dediquei totalmente ao trabalho, eu me travestia de homem para trabalhar, mas homem entre muitas aspas, porque é impossível eu ter sido lida como um homem em algum momento. Nesse processo eu realmente abri mão de ser quem eu realmente sou, e foi por sobrevivência”, explica.
O medo de Bruna é comum a todas as conhecidas trans: voltar à marginalidade — “não era um lugar que eu gostaria de voltar, esse não-lugar” — financeira, emocional e profissional. Então, em segredo, ela podia ser quem era e investiu no processo de transição: laser, hormônios e tudo que pudesse minimizar as expressões masculinas que não lhe pertenciam.
“Ser trans é uma construção de vida e é a coisa que menos deveria importar para eu ter a minha permanência garantida.”
Até que decidiu viver a sua verdade, e encontrou no apoio dos colegas uma das forças para continuar um processo que, não imaginava, seria tão doloroso. Atualmente, Bruna continua na ativa da Marinha do Brasil, mas não pode exercer suas funções porque foi diagnosticada com um transtorno, o transexualismo — assim mesmo, e não transexualidade, que é a forma correta. A luta, agora na Justiça, é para que ela possa continuar a fazer aquilo que fez durante 21 anos, numa carreira imaculada: trabalhar.
“Ser trans é uma construção de vida e é a coisa que menos deveria importar para eu ter a minha permanência garantida. A questão sempre foi pautada pela burocracia, a instituição mesmo. Foi unânime ouvir dos meus colegas que já me viam desta forma, mas agora conseguiam materializar e entender quem era essa mulher que estava representada de uma forma diferente.”
Bruna conta que antes dela, outras militares já reivindicaram seu lugar dentro das Forças Armadas, em vão. A única atitude possível, até ela entrar nessa disputa, era reformar (aposentar) compulsoriamente os profissionais trans. Mas ela não aceitou. Em dezembro de 2017, conseguiu uma liminar que garante a ela o direito de continuar na ativa, até receber um diagnóstico controverso. No mesmo laudo que surge um transtorno inexistente, estão também provas de que ela é saudável física e psicologicamente.
“Eu gostaria de ser o referencial que eu não tive quando era criança.”
“Eu não sou coitada, nunca fui e não vou reivindicar este lugar. Esta revolução que está acontecendo não começou com a Bruna e não termina agora. Ela continua em construção”, afirma. Para ela, a maior dificuldade para uma instituição “quadrada” é lidar com as praticidades da existência de pessoas trans dentro das corporações, como os banheiros. O ato de reformar transgêneros é ignorar a necessidade de atualização. E ela quer ser um agente de transformação dessa realidade.
Bruna diz que a luta é por uma mudança maior: “é para provocar uma mudança para outras pessoas que estão lá dentro, aprisionadas, sem poder reivindicar esse lugar. Assim como outras que têm o sonho de entrar pra carreira militar ou qualquer uma”.
Ela reconhece que ao longo da vida encontrou oportunidades raras para a população trans do Brasil, por isso transformou sua história em uma bandeira. Sua luta é coletiva. “Eu gostaria de ser o referencial que eu não tive quando era criança. Por isso me tornei militante, para conseguir mudar a realidade de outras pessoas que não tiveram as mesmas oportunidades que eu”, explica.
E a militância de Bruna é frenética, como quem não tem tempo a perder. Uma hora depois de encontrar a reportagem do HuffPost Brasil, ela tinha um encontro marcado na Universidade Federal Fluminense, à noite, iria estar na ONG Grupo Diversidade Niterói, onde é vice-presidenta. No mesmo lugar, há um curso pré-vestibular para a população LGBT — “para que possam sonhar e ser o que quiserem”. Ela também é presidenta do Conselho Municipal dos Direitos da População LGBT de Niterói, membro da diretoria da Associação Nacional dos Travestis e Transsexuais e ainda está escrevendo seu primeiro livro. Os dias de trabalham só acabam, com sorte, 22h, antes de enfrentar uma viagem de uma hora e meia até a casa “no meio do mato”, em Maricá.
“É muito simbólico e representativo eu ser uma mulher trans casada, porque eu mostro que é possível.”
Gustavo, seu marido, revela que essa é a rotina comum da mulher com quem vive há 7 anos. Por entender a urgência das pautas debatidas, ele não reclama, mas sempre organiza a casa e o colo para recebê-la. O casamento de Bruna e Gustavo, aliás, também é uma forma de militância. Os dois começaram a namorar quando o rapaz tinha 19 anos e decidiu enfrentar todos os preconceitos que há contra relação que envolva uma pessoa transgênero.
“Ele tem um papel fundamental na reafirmação do meu lugar como mulher na sociedade, porque ele abre mão do privilégio de um homem hetero cis para estar num papel em que a transfobia diária vai alcançá-lo de alguma forma. Por me amar e estarmos juntos, ele diz ao mundo que é possível amar uma mulher trans”, revela enquanto tenta evitar, em vão, trocar olhares com um atencioso Gustavo.
“Nossa vida é política, meu corpo é público. Não tenho pudores de falar e demonstrar. É muito simbólico e representativo eu ser uma mulher trans casada, porque eu mostro para muitas das minhas amigas que desejam uma relação como esta que é possível”, aponta.
Segundo Bruna, vem de Gustavo a ajuda na construção de uma força para enfrentar o mundo. Recentemente, em viagem à trabalho para a Amazônia, a militar esteve em uma aldeia indígena. Sem maquiagem, cercada de famílias e com a mesma altivez que enfrenta o mundo na cidade grande. Elementos que, antes da relação, poderiam disparar inúmeras inseguranças, foram encarados com tranquilidade. “Ele absorve muita dessas demandas, e quando eu não queria ou não estava mais disposta a ser a Bruna militante, eu podia ser só a Bruna. Ter esse espaço é muito importante enquanto mulher, pessoa e militante.”
“Vivendo uma plenitude, para além de fotos, e um companheirismo que salta aos olhos, ela ressalta que o oposto do afeto é a hipersexualização.”
“Existe uma exploração de quem somos, como objeto sexual. Para maioria das pessoas somos só isso. Meu casamento diz muito menos da minha felicidade e muito mais da violência que a gente vivencia como população, de nossos corpos não serem elegíveis para o relacionamento”, destaca. Apesar do amor e da estabilidade, o casal ainda não pensa em filhos. Para a Bruna, a dedicação que a criação de outro ser humano, agora, seria interromper uma liberdade conquistada tão tardiamente.
“Eu lutei muito para ter a liberdade que eu tenho, e nesse ponto eu posso até ser um pouco egoísta. Nem religião eu tenho porque sei que significa abrir mão de algum ponto da minha liberdade. Neste momento atual da minha vida, qualquer coisa que signifique abrir mão de algo para tê-la, não cabe.”
E é a liberdade que, para Bruna, incomoda os homofóbicos e transfóbicos. “Na verdade, todo mundo quer ser livre, mas quando você se depara com alguém que é livre de fato, aquilo incomoda a tal ponto que você não quer a pessoa perto de ti”, pontua.
“Neste momento atual da minha vida, qualquer coisa que signifique abrir mão de algo para tê-la, não cabe.”
Mesmo vivendo sua liberdade, Bruna ainda tem um sonho difícil de alcançar: que parem de assassinar pessoas transgênero por ser quem são. Para ela, a inclusão no mercado de trabalho, a aceitação social e todas as outras pautas partem do fim dos homicídios pautados em crimes de ódio. Com o nome, a força e a luz que tem, ela pretende trazer para junto de si todas as outras pessoas trans.
“Eu não digo que sou privilegiada, eu acho que nenhuma pessoa trans é privilegiada, mesmo se for milionária, mas eu reconheço as oportunidades que eu tive de chegar em lugares que a maioria não chega. Eu tenho a obrigação de tentar fazer com que mais pessoas cheguem.”
Bruna Benevides não é só uma mulher, é uma bandeira, um cais para aqueles e aquelas que ainda estão navegando na luta pela sobrevivência. No que depender da sua atuação política, eles irão chegar sãos e salvos à beira do mar.