Projeto de lei aprovado recentemente na Argentina, no entanto, ainda é exceção; 97% das mulheres da região ainda vivem sob proibição
(Revista AzMina, 18/06/2018 – acesse no site de origem)
O dia 14 de junho de 2018 mal passou e já se tornou um dia histórico para a luta das mulheres na América Latina. Neste dia, após um sessão que durou 23 horas, a Câmara dos Deputados da Argentina aprovou a legalização do aborto no país. O projeto de lei, que permite a interrupção voluntária da gravidez até a 14ª semana, agora segue para o Senado, onde ainda pode ser barrado. Atualmente, o aborto é permitido apenas em caso de estupro ou quando apresenta risco à vida da mulher. O país também foi pioneiro na região em outras pautas sociais, como cotas para mulheres na política, casamento gay e lei de identidade de gênero.
O passo da Argentina em direção à legalização do aborto, no entanto, ainda é uma exceção no panorama da América Latina. Mais de 97% das mulheres em idade reprodutiva (15 a 44 anos) na região vivem em países com leis restritivas ao aborto, segundo o Instituto Guttmacher, organização americana de pesquisa e política para o avanço da saúde e direitos sexuais e reprodutivos.
Apenas quatro países da região permitem que o procedimento seja realizado sem restrições quanto à razão ou por motivos socioeconômicos: Cuba, Porto Rico, Guiana e Uruguai. No México, a regulamentação do aborto é determinada a nível estadual. A Cidade do México autoriza a interrupção, mas a maior parte do país, não.
Nove países permitem o aborto quase que exclusivamente para salvar a vida da mulher, com poucas exceções limitadas a estupro (Brasil, Chile, México e Panamá) e grave anomalia fetal (Chile, Panamá e quase metade dos estados do México).
O aborto não é permitido por nenhum motivo em seis países da região: República Dominicana, El Salvador, Haiti, Honduras, Nicarágua e Suriname.
A severidade com a qual o aborto é tratado ficou marcada no caso da salvadorenha María Teresa Rivera. Em 2011, aos 33 anos, ela foi condenada a 40 anos de prisão acusada de provocar um aborto. Conseguiu sua libertação apenas após quatro anos da condenação. Como o cenário ainda é de criminalização, com a prática podendo levar à prisão em muitos dos países, os dados sobre o número de abortos são escassos.
Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), em média 6,4 milhões de abortos foram realizados a cada ano no período entre 2010 e 2014 na América Latina e Caribe – acima dos 4,4 milhões durante o período de 1990 a 1994. Do total, 76% dos abortos foram realizados de forma não segura, ou seja, por pessoas não treinadas ou com procedimentos que colocaram em risco a saúde e a vida da mulher.
As complicações mais comuns decorrentes de um procedimento não seguro são aborto incompleto, perda excessiva de sangue e infecção. Cerca de 760 mil mulheres na região são tratadas anualmente por complicações decorrentes do aborto inseguro, segundo o Instituto Guttmacher. As mulheres pobres e rurais são as que têm maior probabilidade de sofrer complicações graves.
As complicações decorrentes de abortos clandestinos são apontados como uma das principais causas de mortalidade materna na região. Entende-se por mortalidade materna a morte de uma mulher durante a gravidez ou após os 42 dias seguintes ao término desta, seja qual for a duração, o que inclui abortos. Segundo a Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal), órgão da ONU, o índice de mortalidade materna da região é de 67 mortes a cada 100.000 nascidos vivos.
Para mudar essa situação, ativistas vêm atuando no campo político para tentar garantir o direito ao aborto. Esse processo, porém, tem se mostrado demorado e enfrenta a resistência dos setores mais conservadores da sociedade.
Religião como obstáculo
A questão religiosa é um dos principais entraves à descriminalização do aborto, uma vez que boa parte dos países da América Latina tem na religião um traço bastante forte de sua cultura. “Muito do processo tem sido explicar que estamos pedindo ao Estado, e não à Igreja, que assegure um aborto decente, legal e seguro para as mulheres que precisam dele”, diz a advogada Mónica Roa, que luta pela descriminalização do aborto na Colômbia. “As igrejas podem continuar a dar orientação moral aos seus fiéis, e as mulheres decidirão se seguem ou não essas orientações.”
Mónica foi uma das principais responsáveis por conseguir, em 2006, que a lei colombiana permitisse a interrupção da gravidez em três casos: quando há risco para a saúde física ou mental da mulher, em casos de estupro e quando o feto é diagnosticado com má-formação que impossibilite a vida extrauterina. Mas mesmo com as leis, Mónica conta que a implementação e o acesso ao procedimento legal ainda é difícil.
Apesar dos Estados latinoamericanos serem laicos, ao menos em teoria, o que se mostra na prática é o que o debate público em torno do aborto ainda é pautado por questões de cunho moral e religioso, não de saúde pública. “A Igreja Católica e a Evangélica têm historicamente muito poder na política. Nesse sentido, exercem influência sobre o pensamento livre e na decisão sobre os corpos”, afirma a argentina Camila Parodi, representante do Coletivo Marcha, que luta pela descriminalização do aborto na Argentina, entre outras pautas.
Para Camila, existem dois grandes motivos que impedem a legalização do aborto na Argentina. O primeiro é a desigualdade de gênero no país, principalmente na política, constituída majoritariamente por homens. O outro motivo é a questão socioeconômica.
“As mulheres pobres, sem acesso à saúde privada, na maioria das vezes prejudicam sua saúde e passam por experiências desumanas”, diz a ativista argentina.
Mas Camila vê o cenário avançando, ainda que aos poucos. Segundo ela, após a Campanha Nacional pelo Direito ao Aborto Legal, Seguro e Gratuito na Argentina, o senso comum da população vem passando por mudanças devido à inserção do debate no cotidiano. “Isso foi demonstrado nas ruas. Ao longo dos últimos meses, milhares de pessoas marcharam pela legalização do aborto e a presença do lenço verde instalado pela campanha tornou-se um símbolo das massas”, observa a ativista.
Avanços
Outro caso de avanço na região foi o do Chile. Em agosto do ano passado, o Congresso do país aprovou a descriminalização do aborto em caso de risco de vida da mulher, inviabilidade fetal e estupro. Até então, as chilenas eram proibidas de abortar em qualquer circunstância.
O projeto de lei foi um dos mais simbólicos do segundo mandato da presidente Michelle Bachelet (2014-2018). “Hoje nós mulheres recuperamos um direito básico que nunca deveríamos ter perdido: decidir quando viveremos momentos de dor. #YoApoyo3Causales”, escreveu no Twitter a presidente do país após a vitória no Congresso.
O Chile se aproximou, assim, das regras que valem para o aborto legal no Brasil atualmente. Mas nem tudo é avanço na região. As próprias leis brasileiras que preveem casos de interrupção da gestação foram ameaçadas de retrocesso. No ano passado, voltou à pauta do Congresso a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 181/2015.
Chamada de “Cavalo de Troia” pelos movimentos de mulheres, a PEC originalmente tratava de licença-maternidade em caso de parto prematuro, mas foi usada para estender até o momento da concepção a ideia de inviolabilidade da vida, o que vetaria qualquer possibilidade de interrupção de gestações – inclusive nos casos atualmente previstos em lei.
Bárbara Pereira, Marcella Costa, Paula Pimentel e Pedro Osorio