Lívia Casseres destaca que a criminalização só atinge quem é socialmente vulnerável
(O Globo, 01/08/2018 – acesse no site de origem)
De acordo com um levantamento da Defensoria Pública do Rio de Janeiro, entre 2005 e 2017, 42 mulheres responderam na Justiça por terem feito um aborto. Todas foram enquadradas no artigo 124 do Código Penal, que prevê pena de detenção de um a três anos.
A pesquisa mostrou também as principais características das mulheres criminalizadas pela prática: elas são, em sua maioria, negras, pobres, têm filhos e não têm antecedentes criminais.
Para a coordenadora do Núcleo Contra a Desigualdade Racial (Nucora) da Defensoria Pública do Rio de Janeiro, Lívia Casseres, o fato de mulheres negras e pobres serem as mais criminalizadas pela prática do aborto alimenta um ciclo de vulnerabilidade.
O resultado de quem são as mulheres criminalizadas te surpreendeu?
Já imaginávamos. A pesquisa retrata a desigualdade que a criminalização do aborto provoca. Constata que o sistema de Justiça, assim como ocorre em outros crimes, atinge grupos de mulheres já vulnerabilizadas por questões econômicas, de distribuição de território e questões raciais. Isso contribui para perpetuar uma situação de extrema desigualdade. Ao interromper uma gestação, elas têm que escolher se submeter a um risco muito grande, expondo-se inclusive à morte, e ainda estarem sujeitas à prisão. Esta é sempre uma decisão trágica, que pode acontecer com qualquer mulher, de qualquer idade ou classe econômica.
Por que essas mulheres são as mais criminalizadas?
Pessoas de um extrato econômico privilegiado ou com privilégio racial que querem fazer o procedimento têm atendimento médico em clínicas clandestinas porque podem pagar. É mais raro que a esfera criminal alcance essas pessoas. Quando isso acontece, se dá por uma investigação, e não da forma como acontece com a mulher negra periférica que será atingida no meio de um atendimento por agentes que são responsáveis pela sua proteção (a maioria das denúncias é feita por agentes de saúde). Acontece em um momento de “flagrante”, em que a mulher está fragilizada. O sistema de saúde em conjunto com o de Justiça acaba provocando a violação de direitos dessas pessoas, violações que elas já vão enfrentar na sociedade brasileira como um todo.
O levantamento reuniu todos os processos em tramitação no Tribunal de Justiça do Rio entre 2005 a 2017 e foram encontrados apenas 42 casos. É um número baixo. Por quê?
Não existe nenhum esforço — e nem defendemos que haja — para que todas as pessoas sejam investigadas. Prende-se as mulheres que acabam procurando um hospital público para não morrer dentro de casa (após complicações de um aborto). O sistema é feito para criminalizar pessoas mais vulneráveis e economicamente desfavorecidas.
Alguma das histórias que analisaram te chamou mais atenção?
Ficamos muito chocados com os casos de mulheres que morreram ou quase morreram e, mesmo assim, os familiares foram chamados na delegacia para depôr. Mães e irmãs de luto sendo intimadas pela Justiça como acusadas ou testemunhas. Ao colocar o tema na esfera criminal em vez de na saúde, cria-se um assunto cheio de estigmas e fica difícil falar abertamente sobre. A situação envolve Estado, sociedade, educação aos jovens, um sistema de saúde. É um ciclo perverso que vai se alimentando: as negras são as que mais morrem no parto, as que mais morrem no geral e que são mais criminalizadas por aborto. Isso não é coincidência. Existe uma estrutura racista no país que dificulta que essas mulheres sejam protegidas e que não tenham seus direitos violados.
Quais são as consequências de responder um processo criminal?
Muitas vezes os processo são extintos, mas ela fica com antecedente criminal . Isso é uma espécie de restrição à liberdade. Além disso, por mais que a mulher atenda tudo que foi estabelecido pela sentença, ela será tratada como criminosa pela Justiça. Assim será também pela família e vizinhos por saberem que ela está fichada. Elas são expostas em uma parte extremamente íntima de suas vidas como criminosas e serão rotuladas assim pela Justiça.
Ana Paula Blower