Delação à polícia é considerada quebra de sigilo profissional, mas ainda é frequente em unidades de saúde
(O Globo, 01/08/2018 – acesse no site de origem)
“O próprio profissional de saúde, que deveria proteger a paciente, é quem aciona a polícia”. O lamento é da coordenadora do Núcleo Contra a Desigualdade Racial (Nucora) da Defensoria Pública do Rio de Janeiro, Lívia Casseres. De acordo com um levantamento feito pela própria Defensoria, pouco mais de 30% das mulheres criminalizadas por fazer aborto no estado entre 2005 e 2017 foram denunciadas pelos próprios profissionais de saúde que as atenderam depois que tiveram complicações. Entretanto, isso fere o sigilo entre médico e paciente, garantem especialistas.
Todos os casos levantados pela Defensoria do Rio tinham acontecido em hospitais públicos, já que a grande maioria das mulheres é pobre e não tem dinheiro para pagar por atendimento particular.
— É uma quebra de sigilo médico. Essa prática é proibida porque não se pode, enquanto profissional de saúde, revelar informações da vida do paciente. Não se pode, ainda por cima, colocar seu paciente em risco de enfrentar um processo penal — afirma a advogada Gabriela Rondon, que integra o Instituto Anis – Bioética, Direitos Humanos e Gênero. — Se a mulher procura um hospital porque está com aborto incompleto, ela está correndo risco de vida. Muitas vezes ela é levada por parentes, porque está desacordada ou sem condições de procurar sozinha. Então o médico tem o dever de salvar a vida dela, não de denunciá-la.
Gabriela ressalta que não só a paciente está protegida, mas também o médico. Ele não será, sob nenhuma hipótese, responsabilizado por não contar à polícia que uma mulher que atendeu havia induzido um aborto.
— Muitos médicos não sabem como lidar com a situação e pensam até que serão cobrados por não terem relatado o caso, mas isso não existe. O profissional de saúde está protegido. E isso inclui enfermeiros e quaisquer outros agentes de saúde, não apenas o médico — diz ela.
A pesquisadora responsável pelo levantamento da Defensoria Pública do Rio, Carolina Haber, contou que este é um “problema que a Defensoria não achava que existia”. Ela afirma que os hospitais de onde partiram essas denúncias que levaram à criminalização de mulheres por aborto serão procurados.
— Pode ser que falte um protocolo de atendimento correto para esses hospitais ou o protocolo exeistente não esteja sendo seguido. A Defensoria está até avaliando a possibilidade de entrar em contato com esses hospitais para entender o que está acontecendo — diz Carolina.
TEMPO DE GESTAÇÃO É CRUCIAL PARA DEFINIR RISCOS À SAÚDE
Para as mulheres que são pobres, sem recursos para pagar uma clínica clandestina, o risco de complicações na hora de realizar um aborto é maior. Isso porque elas, em geral, tomam remédios ou fazem procedimentos sem orientação. Ainda por falta de recursos, costumam esperar mais tempo para decidir fazer o aborto e, quanto maior o tempo de gestação, maior a probabilidade de complicações e de morte. A interrupção de uma gravidez só é, de forma geral, considerada segura por médicos até a 12ª semana — ou três meses.
— O tempo de tomada de decisão (para interromper a gestação) é maior para as mulheres mais pobres. A maioria (das que fizeram aborto sozinhas) foi feita com mais de 12 semanas de gestação, o que leva a um risco de morte maior. Notamos a aplicação de métodos rudimentares, grotescos, como inserir objetos no útero. Isso mostra o desespero dessas mulheres — afirma Lívia Casseres.
DEBATE COMEÇA NO STF
Nesta sexta-feira, dia 3 de agosto, começa no Supremo Tribunal Federal (STF) uma audiência pública que discutirá a possibilidade de descriminalização do aborto até a 12ª semana de gestação, por decisão da gestante e sem a necessidade de nenhum tipo de autorização legal.
As audiências foram convocadas pela ministra Rosa Weber. A ação é de autoria do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) e do Instituto Anis – Bioética, Direitos Humanos e Gênero.
Esta é a ação campeã de pedidos de participação da história do Supremo. Serão ouvidas 45 exposições sobre o tema, feitas organizações das áreas de saúde, juristas, entidades religiosas, de direitos humanos e também estudiosos do tema.
Clarissa Pains; Colaborou Ana Paula Blower