Sinais permitem produzir laudos mais precisos sobre esse tipo de crime
(Agência Brasil, 09/08/2018 – acesse no site de origem)
Idealizadora da Sala Lilás – espaço dentro das unidades do Instituto Médico-Legal (IML) destinado ao atendimento a mulheres vítimas de violência –, Andrea de Paula Brochier lembra os anos em que, como perita, ignorou vestígios importantes em uma cena de crime que exigiriam sensibilidade e poderiam alterar completamente o resultado de uma investigação. “Eu não via a violência simbólica”, desabafou hoje (9) Andrea.
Segundo Andrea, é justamente nos indícios dessa violência simbólica que hoje é possível produzir laudos muito mais detalhados sobre um crime que podem confirmar um caso de feminicídio. “Este é um crime de ódio. Não são crimes passionais. Têm elementos de exagero e geralmente são premeditados”, disse ela, ao participar do primeiro painel de debate da 12ª Jornada Lei Maria da Penha, iniciada nesta quinta-feira (9), em um plenário do Supremo Tribunal Federal (STF).
Ao lembrar que esse tipo de crime, por ser caracterizado por uma história de violências que vão desde o controle sobre roupas a agressões verbais e morais, não pode ser tratado apenas com dados de um assassinato comum, como ainda é conduzido em investigações por muitos agentes. A perita ressaltou que detalhes como fechos de portas quebrados, as vestes das vítimas e cicatrizes antigas podem mudar os rumos de uma investigação. “Todos esses sinais têm que ser observados ali, porque depois as coisas e os indícios desaparecem”, alertou.
A jornada deste ano tem foco nos profissionais de segurança pública que trabalham com esse tipo de crime, como delegados e peritos, e do sistema judiciário, como defensores públicos, promotores e juízes. A proposta é tentar, em dois dias, estabelecer padrões e diretrizes que tornem mais eficiente e rápida a solução de casos de feminicídio no país.
Depois de identificarem que a maior parte dos feminicídios ocorria à noite, nos fins de semana, autoridades de segurança pública do estado do Piauí investiram em estruturas para aperfeiçoar as investigações: foram criados núcleos específicos de polícia para investigar esse tipo de crime e, atualmente, as delegacias especializadas em mulheres mantêm plantão 24 horas todos os dias da semana. Além dessas estruturas, a população têm acesso a um aplicativo que funciona também como uma espécie de “botão de pânico”, que pode ser acionado tanto pela vítima quanto por vizinhos ou por crianças que estejam presenciando ou ouvindo uma agressão ou discussão mais acalorada.
Eugênia Nogueira Monteiro, delegada da Polícia Civil do Piauí, defendeu o fim da cultura do “não meter a colher”. “No Piauí, a gente mete a colher, sim, e mete a colher de pau”, declarou. À frente de grande parte das mudanças feitas na estrutura estadual para atender as vítimas da violência, Eugênia explicou que cada caso é estudado isoladamente, e com todo cuidado, em detalhes. Segundo a delegada, esse trabalho tem mostrado, por exemplo, que grande parte de crimes como latrocínio e lesões seguidas de morte são, no fim das contas, feminicídios.
“É um crime exposto, tem o excesso. Não é uma ou três facadas, são 29. É um tiro na genitália da mulher”, afirmou Eugênia, acrescentando que o agressor atua como quem está reagindo à indignação de uma sociedade machista, que não aceita a mulher em seus espaços.De acordo com a delegada, há casos de absolvição de agressores porque toda a perícia foi baseada no momento da morte, ignorando os sinais no local e a história daquela mulher.
A delegada deu outros exemplos de gestos observados, como o escalpe de uma vítima que era cabeleira ou o uso de uma coleira em uma mulher que trabalhava como professora no estado.
Único homem na primeira mesa de debates, o promotor de Justiça do Ministério Público do Distrito Federal, Thiago Pierobom de Ávila, também disse que a responsabilização mais efetiva desse tipo de crime começa na investigação criminal. “Quem chega à cena tem que ter os olhos para identificar se há questão de gênero no crime”, disse. Ele lamentou uma situação ocorrida em Brasília, quando policiais militares – chamados para atender um caso em que a mulher foi jogada do apartamento pelo marido – reviraram todo o apartamento sem preservar as provas no local. “É preciso aperfeiçoamento de protocolos de atuação”, afirmou o promotor. O sistema não têm dado as respostas à essas vítimas e suas famílias, destacou Ávila.
O promotor ainda lamentou o silêncio de magistrados em tribunais diante da defesa de agressores que direcionam ataques às vítimas, denegrindo sua história e dignidade, sob o argumento de estarem exercendo ampla defesa. “É obrigação ética do magistrado intervir”, cobrou.
Juíza de Direito em São Paulo, Teresa Cristina Cabral Santana fez eco ao apelo e defendeu uma postura mais ativa de juízes na condução dos depoimentos. “Há direitos e garantias inegociáveis mas a plenitude da defesa não pode ser usada para ofender a memória da vítima”, disse.
A magistrada afirmou ainda que os juízes devem estudar mais o crime de feminicídio para que possam atuar de forma mais eficiente nesses casos. “Nossa formação tem que ir além da sensibilização. Não é só sensibilizar, é saber o que é a violência de gênero, quais os tipos e formas com que ela acontece. A falta de conhecimento impõe obstáculos e nos faz repetir paradigmas”, lamentou.
Carolina Gonçalves; Edição: Nádia Franco