Advogada foi morta e o marido foi acusado de feminicídio. Vídeo de circuito de segurança mostra agressões sofridas antes do assassinato
(Nexo, 10/08/2018 – acesse no site de origem)
No dia 22 de julho de 2018, a advogada Tatiane Spitzner foi encontrada morta após cair do 4º andar do prédio em que morava com o marido em Guarapuava, no Paraná.
Na primeira semana de agosto, foram divulgadas imagens das câmeras de segurança do condomínio que mostram a advogada sendo continuamente agredida pelo marido, o biólogo e professor universitário Luís Felipe Manvailer, até momentos antes de cair pela janela.
Manvailer foi preso ainda no dia 22 e a exame pericial constatou uma fratura no pescoço de Tatiane, característica de quem sofreu esganadura.
Na tarde desta segunda-feira (6), o Ministério Público do Paraná o denunciou pela morte da esposa, pelo crime de homicídio com quatro qualificadoras: meio cruel, dificultar defesa da vítima, motivo torpe e feminicídio. Mainvailer também foi denunciado por fraude processual, por alterar a cena do crime e por cárcere privado.
No Brasil, o feminicídio passou a ser caracterizado como um agravante específico do crime de homicídio em 2015. Na lei, é definido como “[homicídio] contra a mulher por razões da condição de sexo feminino”.
A lei considera que há razões desse tipo quando o crime envolve “violência doméstica e familiar” e “menosprezo ou discriminação à condição de mulher”.
“Todos os anos, mais de 4.500 brasileiras são assassinadas, o que mantém o Brasil em 5º lugar em ranking internacional. Impedir assassinatos e feminicídios é responsabilidade de todas e todo”, disse a representante da ONU Mulheres Brasil, Nadine Gasman, ao Nexo.
“O caso é revelador do sofrimento solitário de Tatiane, da ação violenta e calculada do agressor, incluindo a alteração da cena do crime e o plano de fuga, e também das omissões e hesitações que não podem acontecer diante da violência contra as mulheres”, complementou.
O assassinato de Tatiane Spitzner ganhou grande notoriedade a partir da primeira semana de agosto. A não interferência de vizinhos e outros durante as agressões, em parte ocorridas em áreas comuns do prédio, tornou-se um dos aspectos mais comentados do crime.
Outros casos de feminicídio foram noticiados quase concomitantemente ao da advogada. De acordo com um levantamento feito pelo portal G1 a partir dos dados oficiais dos homicídios nos estados, divulgado em março de 2018, 4.473 mulheres foram vítimas de homicídios dolosos em 2017, sendo 946 feminicídios – número considerado subnotificado.
Por ser baseado no gênero, esse tipo de crime “pode acontecer com qualquer mulher. Nenhuma está mais protegida por ter mais dinheiro, ou melhor escolaridade”, disse Beatriz Accioly, antropóloga e pesquisadora da Universidade de São Paulo em estudos de gênero e violência contra mulheres, em entrevista ao Nexo.
Accioly esclarece, abaixo, em que a morte da advogada se assemelha às estatísticas sobre violência de gênero no Brasil, por que ganhou notoriedade e como a violência doméstica e familiar é, em geral, percebida pela sociedade brasileira.
Em que aspectos o caso de Tatiane Spitzner é representativo dos casos de violência de gênero e feminicídio no Brasil hoje?
BEATRIZ ACCIOLY Hoje [7 de agosto de 2018] faz 12 anos da promulgação da Lei Maria da Penha. O caso da Tatiane ainda reflete, infelizmente, a demanda de que a violência doméstica e familiar contra as mulheres seja levada a sério no Brasil.
Essa demanda data desde as décadas de 1970 e 1980, em que a luta se fortaleceu para que essa violência fosse encarada como um assunto público, que diz respeito ao Estado e não à esfera do privado. É uma disputa que tem ecos atuais. Ainda tem muita gente que acha que não deve se envolver em brigas familiares, em violências que acontecem entre cônjuges ou parceiros, que isso não diz respeito a terceiros.
Apesar dos ganhos das últimas décadas, apesar da lei, que é estatisticamente comprovada como conhecida pela população brasileira, apesar da mudança de mentalidade, esse caso infelizmente mostra, com a falta de ação dos vizinhos e do próprio condomínio, que a gente ainda opera muito pela lógica de que “em briga de marido e mulher, ninguém mete a colher”.
[O crime] obedece a quase todas as estatísticas e estudos que a gente tem sobre violência doméstica e familiar e assassinato de mulheres por parte de parceiros e ex-parceiros. É com qualquer mulher. Não é a mulher da classe baixa, não necessariamente é uma pessoa sem instrução, com um marido usuário de entorpecentes. É qualquer pessoa.
Tanto a Tatiane quanto o assassino eram pessoas com ensino superior, boa aparência física, de classe média alta ou alta, pareciam fazer parte de uma elite local. O que mostra que a violência doméstica e familiar contra a mulher é um crime baseado em gênero.
Como diz o corpo da Lei Maria da Penha, está ligado à condição da relação entre homens e mulheres. Acontece com todas as classes sociais, diferentes recortes raciais, níveis de instrução. Infelizmente é um caso bastante típico.
Com outros casos de feminicídio sendo noticiados concomitantemente ao dela, por que você diria que o de Tatiane ganhou destaque?
BEATRIZ ACCIOLY Ganhou notoriedade pelas gravações das câmeras de segurança. [O efeito da veiculação dessas imagens] é uma questão ambivalente. De certo modo, mobilizou muito a opinião pública e também a mídia porque esses crimes acontecem em ambientes privados, da intimidade das famílias.
Acredito que o que chamou a atenção para esse caso é a presença desse material visual, que em geral a gente não tem: a gente não vê o quanto a vítima lutou para fugir, para sobreviver, o quanto durou o processo da agressão.
Isso é ambivalente porque de certa forma ajuda a mostrar o que acontece quando ninguém está olhando, escancara o que acontece a portas fechadas, muitas vezes, nas casas das pessoas.
Mas também é preciso pensar um pouco no respeito à imagem da vítima. Memes têm sido produzidos com fotos nas redes sociais, então é preciso um cuidado com uma pessoa que já não está aqui e não pode mais consentir.
Acho que é importante pensar que, nesse caso, a gente tem a gravação mas, na maioria dos casos de violência doméstica e familiar – não só os que levam ao assassinato, mas agressões, ameaças, insultos – não há [gravação]. E a gente duvida muito da palavra da mulher.
Se isso tivesse acontecido e não tivéssemos as imagens, como esse caso estaria sendo tratado? Se fosse somente, por exemplo, a palavra de um vizinho, que disse que ouviu uma gritaria, ou alguém dizendo que eles tinham um histórico de violência. A gente tem que dar mais valor à palavra da vítima.
A ausência de provas materiais é um grande problema nos julgamentos de violência doméstica e familiar, porque em geral [a violência] acontece entre as duas pessoas, em um espaço fechado, sem testemunhas ou registros.
É importante pensar em quantas mulheres são assassinadas [de cujos crimes] a gente não tem vídeo. E temos que nos sensibilizar tanto quanto vendo as imagens do caso da Tatiane, que são chocantes, que indignam.
Em geral, como a mulher vítima de violência doméstica é vista pelos que a cercam?
BEATRIZ ACCIOLY Ainda é bastante comum a culpabilização da vítima, a ideia de que a mulher é culpada pelo que aconteceu com ela, que, de alguma maneira ela não se defendeu, não fugiu, não teve forças. Ou que mulheres ficam em relações violentas e que, por isso, devem arcar com as consequências.
Para além dos pormenores que envolvem o que é estar em uma relação com ciclo de violência familiar – questões psicológicas, sociológicas, que especialistas e estudos mostram que são muito mais complexas do que simplesmente romper a relação. É uma falácia dizer que o mero rompimento acaba com o ciclo de violência: às vezes ele pode levar ao assassinato.
Essas pessoas estão inseridas em um ciclo muito complexo. Não é um estranho, é alguém por quem você tem afeto, e, ao mesmo tempo, medo.
O termo “ciclo de violência” surgiu em estudos nos EUA, na década de 1980. A violência doméstica e familiar, diferentemente de outros tipos de violência como por exemplo a violência urbana, não é um fato que normalmente acontece uma vez e não se repete.
Ela se repete ciclicamente, e em geral obedece a algumas “etapas”: a da violência, do arrependimento do agressor, do pedido de desculpa, a volta a uma relação minimamente harmoniosa e depois o momento do conflito, que vai levar novamente a uma agressão e assim sucessivamente.
As pessoas insistem muito em culpar a vítima e em alegar que às vezes se chama a polícia e a ela não vem. O papel do cidadão e da cidadã é alertar a autoridade. Se você alertou e a autoridade policial não compareceu, passa a ser uma negligência policial.
No contexto conjugal, quem são as vítimas potenciais de feminicídio? Como protegê-las?
BEATRIZ ACCIOLY É importante levar em conta que o feminicídio não se restringe à mulher que é assassinada em um contexto de violência doméstica e familiar.
É o assassinato de mulheres em decorrência da sua condição de mulheres. Por exemplo, estupro seguido de morte ou outros crimes associados à misoginia também são crimes de feminicídio.
Nos casos de feminicídio, em que o autor tem uma conexão com a vítima, é difícil dizer quem está mais vulnerável a isso. Há vários perfis de mulheres sendo assassinadas por companheiros, maridos, ex-parceiros, dentro de uma situação de violência doméstica.
Você tem uma advogada, bem sucedida, jovem, como no caso da Tatiane, mas há pessoas mais velhas, de classes sociais mais baixas. Não tem uma mulher mais vulnerável.
Sem dúvida, pessoas que moram em lugares onde as autoridades policiais têm menos poder, como áreas periféricas, favelas, onde há um poder paralelo e a gente sabe que a polícia não entra, por exemplo, podem contar menos com a proteção jurídico-policial.
Mas, de fato, o que a gente vê com essa quantidade de notícias é que pode acontecer com qualquer mulher. Nenhuma está mais protegida por ter mais dinheiro, ou melhor escolaridade. A própria Maria da Penha, que virou lei, era uma farmacêutica de classe média, que sobreviveu, felizmente, a duas tentativas de homicídio.
Como se evita que agressões cotidianas levem ao feminicídio?
BEATRIZ ACCIOLY Reforçando as políticas públicas e as leis de proteção à mulher em situação de violência doméstica e familiar, levando essa discussão para espaços de formação, pedagógicos, para a escola, para o espaço público, mostrando para as pessoas o caráter grave e público, que é um crime, não é uma coisa normal, natural, que acontece nas famílias. As mulheres são dotadas de direitos e têm direito à integridade física, psicológica e moral.
E continuando a lutar para que a Lei Maria da Penha tenha mais eficácia, com formação das autoridades policiais, sensibilização do judiciário para a gravidade dessas situações, continuar militando, mostrando que esse é um problema grave e recorrente no nosso país.
Juliana Domingos de Lima