O que discutimos quando falamos de descriminalização do aborto no Brasil?
(Folha de S.Paulo, 14/08/2018 – acesse no site de origem)
Não conheço quem não sonhe em diminuir o número de abortos no mundo. Concordamos por unanimidade que todo esforço deve ser feito para que se evitem gravidezes indesejadas. Tampouco conheço, fora os lunáticos de plantão, quem deseje a morte de mulheres por terem tentado fazer um aborto. Parto do pressuposto de que todos entendemos que educação e acesso a métodos contraceptivos são meios para a redução de gestações inviáveis.
Mas, ainda assim, uma coisa é certa: não há como erradicar o aborto, que sempre existiu e sempre existirá. Enquanto houver uma mulher que, por violência, doença, falta de condições psíquicas, condições materiais ou desejo, não puder levar uma maternidade adiante com dignidade, haverá abortos. E são muitas mulheres nessas condições e sempre serão porque as contingências de uma gravidez são infinitas, as garantias de contracepção são limitadas e o compromisso de uma vida inteira nem sempre pode ser assumido.
Então o que discutimos quando falamos de descriminalização e de legalização do aborto no Brasil? Não estamos mais discutindo o aborto em si, porque se o estivéssemos, optaríamos pela legalidade, uma vez que, nos países onde foi implementado, houve diminuição dos casos.
Discutimos primeiramente se mulheres negras e pobres devem ser presas ou morrer tentando fazê-lo. Estamos discutindo quais são os corpos que importam, parafraseando Judith Butler.
Afinal, o aborto, embora seja feito por 1 em cada 5 mulheres de qualquer raça, religião e classe social em nosso país, ameaça sobretudo a liberdade e a vida de mulheres pobres e negras.
Mulheres brancas e de classe média alta, como eu, recorrem a métodos medicamentosos que chegam pelo correio no conforto de suas casas, em absoluto sigilo por meio de ONGs facílimas de serem encontradas na internet e, fina ironia, a baixíssimo custo.
Podem realizar um procedimento simples com o acompanhamento a distância de seu médico particular, que só será acionado em caso de complicações que, por sua vez, poderão ser atendidas no hospital de sua escolha.
Ainda que não haja aborto sem sofrimento, pois se trata de uma experiência psíquica e orgânica violenta para qualquer mulher, as condições em que são feitos podem ser a diferença entre a vida, a morte, a liberdade ou a prisão.
Então, na realidade, estamos discutindo o futuro de mulheres pobres diante do descalabro de uma maternidade que não desejam ou não podem assumir ou, ainda, de um filho que não querem colocar no mundo sob a responsabilidade de outrem.
O “fiu-fiu” e gestos similares são formas de intimidação da mulher na ocupação do espaço público. A cultura do estupro tenta destituir a mulher de sua sexualidade, submetendo-a ao desejo do outro. O feminicídio, estrategicamente consentido pela vizinhança, elimina qualquer uma que não se submeta ou que não se submeta o bastante. O arbítrio sobre o aborto decide se a mulher deve ou não ser mãe, independentemente do seu desejo.
Em todos esses exemplos, só se está falando de uma coisa: a quem pertence o corpo da mulher.
O direito à decisão sobre o aborto é o marco zero do lugar da mulher dentro de uma sociedade.
As peças “O Julgamento Secreto de Joana D’Arc” de Aimar Labaki e“Carne de Mulher” de Dario Fo e Franca Rame são lindos exemplos, em cartaz no momento, daquilo que a arte não cansa de denunciar desde sempre: o corpo das mulheres ainda é de todos, mas não é de cada uma delas.
Vera Iaconelli é Diretora do Instituto Gerar, autora de “O Mal-estar na Maternidade”. É doutora em psicologia pela USP.