É quase impossível escapar de uma discussão sobre aborto atualmente. Em agosto, o Supremo Tribunal Federal discutiu o tema em uma audiência pública, cujo objetivo era julgar a ação que solicita a exclusão dos artigos que citam a interrupção voluntária da gravidez do Código Penal. O cenário de eleições no Brasil e as discussões sobre a descriminalização do aborto em países vizinhos têm acalorado os debates, mas dúvidas sobre a realização do procedimento em casos previstos por lei no país ainda pairam sobre a população. No dia 4 de setembro, a Defensoria Pública do Estado de São Paulo publicou a cartilha “Direitos Reprodutivos: ‘Aborto Legal'”, um material que simplifica as Normas Técnicas do Ministério da Saúde referentes aos casos em que o aborto é permitido legalmente.
(Bol Notícias, 12/09/2018 – acesse no site de origem)
No Brasil, o abortamento legal só é garantido em três situações: gravidez decorrente de violência sexual, quando a gestação oferece risco de vida à mulher, ou quando o feto sofre de anencefalia (sendo esta última baseada na decisão do STF de 2012). A cartilha foi produzida por iniciativa do NUDEM – Núcleo Especializado de Promoção e Defesa dos Direitos das Mulheres, com a intenção de fornecer informações simples e práticas sobre o aborto legal e orientar pessoas que precisem procurar o serviço.
“Em 2015, o NUDEM instaurou um procedimento administrativo com o intuito de averiguar como o serviço de abortamento legal era oferecido pelo município de São Paulo, porque foram recebidas denúncias alegando que as mulheres não recebiam o auxílio correto”, informa a Defensora Pública Nálida Coelho Monte, coordenadora do NUDEM. Entre as denúncias, feitas tanto por mulheres que procuraram atendimento quanto por profissionais de saúde, constam casos de negativas a atendimento por parte dos hospitais municipais que oferecem o serviço de aborto legal, encaminhamento desnecessário de pacientes à outra unidade para realizar o procedimento, distorção das informações legais sobre o processo de aborto e exigência de documentos não obrigatórios.
“Por exemplo, eles [médicos] exigiam boletim de ocorrência, ou em casos de violência sexual, eles exigiam um tempo de gestação diferente do determinado pelas normas técnicas. Também vários profissionais de saúde alegavam escusas, a chamada objeção de consciência”, explica Nálida.
Desencontro de informações
A Defensoria Pública observou que, mesmo sendo permitidos por lei, ainda chegam mulheres com dúvidas relacionadas aos casos em que elas podem solicitar um aborto. Eles receberam relatos de hospitais que não realizavam abortos em casos de risco de vida ou de fetos anencéfalos, e também situações em que o período gestacional oficial para realizar o procedimento em mulheres grávidas por violência sexual era desrespeitado: ele pode ser feito até a 20ª ou 22ª semana de gestação, com peso do feto previsto de até 500 gramas. Em alguns dos relatos, as mulheres foram informadas de que só seria possível fazer o aborto até a 12ª semana de gravidez. Além disso, o prazo não se aplica em casos de risco de vida ou anencefalia – estes podem ser feitos a qualquer momento da gestação e sem autorização judicial.
Outro item que não é obrigatório, especialmente em casos de estupro, é o B.O. Segundo Nálida, não há a necessidade de encaminhamento da vítima à polícia, pois o registro é realizado dentro do hospital, com apoio de uma equipe multidisciplinar, quando a mulher procura o abortamento legal. “Ele é composto por quatro fases: o relato de crime circunstanciado da mulher, um relatório médico, um termo de aprovação da interrupção da gestação e o consentimento livre e qualificado da mulher. Tudo isso é realizado no hospital e subscrito por três profissionais de saúde, de diferentes áreas, e não há necessidade de encaminhamento policial”, explica a defensora pública.
Ela acredita que a desinformação seja fruto do desconhecimento das normas técnicas, e também porque “o aborto é algo que envolve o caráter moral, cultural e legal” da população.
Despreparo hospitalar
Na cartilha, é destacado que a mulher tem o direito de ser atendida pela rede pública de saúde, com direito a um acompanhante durante todo o procedimento, e deve ser garantido um atendimento humanizado à paciente, orientando-a tanto sobre a prevenção futura e métodos contraceptivos quanto durante o aborto; quando será escolhido e qual a melhor forma de realizar o procedimento (farmacológico ou cirúrgico).
Tecnicamente, todo hospital municipal com serviço de obstetrícia e maternidade deveria oferecer também amparo a quem procura por aborto legal. Entretanto, na prática, não é o que acontece. “Mesmo o hospital tendo o serviço, o encaminhamento ainda ocorre de forma inadequada. Acho que por conta de uma decisão política dos municípios, o serviço não está disponível em todos os locais que deveriam ter”, diz Nálida. Em São Paulo, somente cinco hospitais municipais são citados no site da Prefeitura: Hospital Dr. Fernando Mauro Pires da Rocha, Hospital Jardim Sarah, Hospital Dr. Carmino Caricchio, Hospital Municipal Tide Setúbal, e o Hospital Escola Dr. Mario de Moraes Altenfelder Silva.
A defensora pública também informa que, para que um hospital possa fornecer o abortamento legal, ele deve dispor de uma equipe multidisciplinar, composta por “um médico obstetra, um enfermeiro e um psicólogo ou assistente social” a postos.
Objeção de consciência – quando um médico pode se recusar a fazer um aborto?
Citada como uma das principais causas das denúncias feitas à Defensoria Pública do Estado de São Paulo, a objeção de consciência é uma alegação feita pelo profissional de saúde para não atender aos desejos do paciente quando a solicitação vai de encontro com a liberdade de pensamento, crença e consciência do médico. Ela está presente no Código de Ética Médica, Capítulo I, item VII: “o médico exercerá sua profissão com autonomia, não sendo obrigado a prestar serviços que contrariem os ditames de sua consciência ou a quem não deseje, excetuadas as situações de ausência de outro médico, em caso de urgência ou emergência, ou quando sua recusa possa trazer danos à saúde do paciente”.
Porém, como o próprio item diz, o profissional de saúde não pode recusar o atendimento caso não haja outro médico para atender ao pedido da paciente, ou em casos emergenciais. Ele também não tem o direito de tentar mudar a decisão da mulher que procura o aborto. É o que acontece na prática? Conforme os relatos da Defensoria, a objeção de consciência é alegada mais do que deveria em casos de aborto, mesmo dentro da legalidade.
“São frequentes os relatos de objeção de consciência. Geralmente, em casos de violência sexual, os médicos têm receio da falsa declaração da pessoa. Acredito que seja esse um dos motivos”, pensa Nálida. “A ideia é que o profissional da saúde não tenha este receio e não receba o relato da gestante com dúvidas e desconfiança. É importante destacar que tem uma parte do procedimento em que a gestante assina um termo de responsabilidade atestando que a gravidez ocorreu por conta de violência sexual, e a partir do momento que ela assina esse termo, o profissional de saúde não tem a responsabilidade de julgar ou decidir se a declaração é verdadeira ou não”. Ou seja, se posteriormente for comprovado que a mulher mentiu sobre ter engravidado de um estupro, o médico não será punido por realizar o procedimento.
Mas e se, mesmo assim, ele se negar a fazer o aborto? “O médico tem que, necessariamente, encaminhar a gestante para outro hospital ou médico que realize o aborto. Se não tiver um profissional disponível, ele deve fazê-lo”, explica. Ele também não pode se recusar caso a gestante esteja em situação de risco ou emergencial, ou até mesmo se ela já estiver em processo de aborto por tê-lo feito de forma insegura. Se ele se recusar, isso pode ser visto como negligência e pode responder civilmente ou criminalmente pela objeção.
Crimes médicos: rompimento de sigilo e tentativas de convencer a mulher a não abortar
Além do que aborda a cartilha, Nálida citou casos em que mulheres tentaram abortar de forma insegura e chegaram ao hospital procurando ajuda, para depois descobrirem que foram denunciadas por aborto ilegal pelo próprio médico que as atendeu. “Existe o risco da mulher ser denunciada pelo médico por realizar um aborto inseguro, infelizmente, mas também isso pode interferir, tanto do ponto de vista criminal quanto ético, no profissional de saúde por conta do rompimento de sigilo”, conta. A quebra de sigilo é mencionada no Código Penal e também Código de Ética Médica. “Em princípio, é garantido o sigilo nesse caso, e ele só pode ser rompido nas hipóteses em que isso implica em risco de vida da própria mulher. Ela deve ser notificada do rompimento do sigilo”. Ela também diz que, algumas vezes, estas mulheres teriam direito ao aborto conforme diz a legislação brasileira, mas que, por desinformação e desespero, apelam para métodos não seguros.
Outra situação em que médicos estão ferindo seu código de ética é quando eles tentam convencer a paciente a não abortar. “O profissional de saúde não pode dissuadir a mulher a não fazer o aborto em casos previstos pela lei, o que ele deve é dar um suporte para que a paciente escolha por si só qual é a decisão mais adequada”, afirma Nálida.
Apesar da Defensoria Pública não conseguir monitorar o alcance da cartilha, eles tentam difundir o material de todas as formas possíveis. “A gente disponibiliza o material para todo o Estado de São Paulo, todas as defensorias, hospitais e serviços de atendimento à mulher. Além disso, as cartilhas estão disponíveis no site do NUDEM”, finaliza Nálida.
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Por Jacqueline Elise Colaboração para Universa