Filósofa e ex-deputada argentina analisa o saldo da luta feminista no país, que por pouco não avançou para a legalização do aborto
(CartaCapital, 21/09/2018 – acesse no site de origem)
Antes de começar a falar, a filósofa argentina Diana Maffia desamarrou o lenço verde que trazia no pescoço e o estendeu diante da plateia de engravatados – cada um dos quais havia pago até 1.540 reais para estar lá. Foi aplaudida extensivamente.
O gesto dizia que a campanha pelo direito ao aborto legal, gratuito e seguro, derrotada no Senado argentino, não tinha morrido. Otimista, Maffia acredita na possibilidade de aprovar a medida após as eleições do ano que vem, que devem renovar o Congresso do país. “O próximo debate não parte, de maneira alguma, da mesma posição. Parte com muito caminho andado”, disse a CartaCapital.
Doutora em filosofia pela Universidade de Buenos Aires, ela é atuante no movimento feminista há 35 anos e foi deputada independente na Câmara. Atualmente, dirige o Observatório de Gênero na Justiça, órgão vinculado à prefeitura de Buenos Aires que monitora a interação das mulheres com o Judiciário e o Estado.
Em entrevista, ela esmiuçou a estratégia política que as feministas devem empregar, traçou comparações com o movimento brasileiro e criticou a gestão de Mauricio Macri na crise vivida pelo país.
CC: Para a sra., qual é o saldo final da campanha pelo aborto legal na Argentina?
Diana Maffia: A campanha apresentou um projeto de lei que foi rejeitado no Parlamento várias vezes, incluindo a década em que governou Cristina Kirchner. Essa foi a sétima vez em que o projeto foi apresentado e o presidente atual inesperadamente propôs que fosse debatido. Isso já é uma vitória por si só.
A segunda vitória foi propor a troca de um artigo na lei de 1921, escrita quando nenhuma mulher podia participar do debate político e todos os pactos sociais eram masculinos.
Sabíamos que o Senado era mais difícil, porque é uma câmara mais conservadora e havia uma maioria que tinha se manifestado expressamente contra. De todo modo, participamos também do debate no Senado e fizemos uma campanha de opinião pública muito ampla e importante. Acredito que essa mobilização teve grande impacto político. Foram um milhão de mulheres e homens [às ruas].
Poder colocar nossas convicções e nossa maneira de demandar também foi muito importante. A legitimação social que teve a demanda pelo aborto o despenalizou socialmente. Não penalmente, mas socialmente.
A própria Igreja Católica voltou atrás com algumas barreiras que tinha colocado à educação sexual e à distribuição de contracepção. Estamos muito mais atentas para denunciar os hospital que não cumprem a lei. O próximo debate não parte, de maneira alguma, da mesma posição. Parte com muito caminho andado.
CC: Qual é a estratégia política agora? Esperar o Senado ficar mais progressista?
DM: Uma das coisas que ficou em evidência é a distância entre os representantes e representados — sobretudo as representadas. No ano que vem, nas eleições, já se aplicará um princípio de paridade no Senado — não haverá mais somente a cota de 30%, que sempre foi o teto, mas agora o sistema demanda que se elejam o mesmo número de homens e mulheres. Então haverá mais mulheres. Não há como ignorar que muitas [senadoras] que votaram contra são mulheres, e sobretudo mulheres eleitas para não modificar as estruturas reais de poder em seus partidos. Cabe às oposições firmar outro tipo de rede.
Na Câmara dos Deputados, foi criado uma coalizão em favor da lei, chamada Las Sororas. Isso é muito novo, então me parece que há muitos avanços também na construção política.
Um dos partidos políticos, que na sua origem foi liberal, progressista e preocupado com os direitos humanos como foi o radicalismo [União Cívica Radical, principal partido de oposição]. Foi ele o que mais concentrou votos pela derrota da lei. Isso gerou uma crise geracional dentro do próprio partido.
Os jovens radicais não querem uma direção conservadora envelhecida, com mecanismos que não são plurais, abertos e democráticos na eleição interna de um partido. E é muito provável que isso se veja no ano que vem, quando serão as prévias internas dos partidos para formar as chapas eleitorais.
Na Argentina, o movimento feminista é mais tradicional e organizado do que no Brasil — prova disso é que o debate do aborto teve de ser pautado no STF pela falta de representação feminina no Congresso. Quais os desafios comuns às feministas argentinas e brasileiras?
Creio que foram consolidados feminismos populares [nos dois países] e isso é muito importante. O feminismo em suas origens era um movimento ilustrado, elitista, e isso foi desfeito primeiro no Brasil e depois na Argentina. Lembro de encontros feministas latino-americanos em que as companheiras do Brasil me surpreendiam pela enorme diversidade, criatividade e diálogo, que fazem parte da cultura do Brasil. Na Argentina é mais difícil formar coletivos, sempre houve fraturas internas, divisões.
CC: Mesmo?
DM: [Ri] Tremendas, tremendas. De qualquer forma, os feminismos populares me parecem ser algo em comum, muito potente, e a intersecção do gênero com outras variáveis, particularmente com classe e etnia. Há aqui uma potência contra o racismo. Na Argentina também começamos a consolidar posições um pouco mais plurais com relação aos povos originários, que sofreram perseguições políticas a partir da demanda por terras.
Assim como vocês recorreram no [Supremo] Tribunal Federal, também utilizamos a Justiça de maneira estratégica para obter concessões. Em particular, conseguimos uma da Corte Suprema que explicitou o alcance do direito penal em casos de violação [dos casos legais de aborto]. Isso foi muito importante, porque obriga o Estado a ter um protocolo de atendimento dos abortos não-puníveis, e obriga a entendê-los de uma maneira mais ampla da que estava legitimada nos tribunais e no sistema médico. Então isso amplia o acesso ao aborto enquanto não conseguimos a legalização. Os avanços e proteções que amparam as mulheres são muito maiores agora.
CC: Como a sra. comentou, a decisão de Macri de pautar o aborto no Congresso surpreendeu a todos. Como avalia o governo dele, no contexto da crise atual na Argentina?
DM: Bom, não votei nesse governo. Sou socialista, votei na esquerda. Estou acostumada a perder. Quando Macri era prefeito de Buenos Aires, ele fez uma aliança com o kirchnerismo e as resoluções se tomavam de comum acordo. Nos oito anos em que Macri governou, o kirchnerismo e o macrismo foram sócios, não opositores.
O mesmo está ocorrendo ante o que se representa publicamente como um antagonismo. Há uma negociação entre partes de coisas muito importantes para a política [nos bastidores]. Quem perde com isso são precisamente as minorias, os grupos que precisam do diálogo.
Por outro lado, tem uma diferença muito grande, já que o governo de Macri tem muito pouca representatividade de mulheres. Nos seus ministérios só têm duas, e toda a equipe econômica é masculina e misógina, sem considerar questões econômicas relevantes para as mulheres. Estou em desacordo com o tipo de política atrasada, de empréstimos com o FMI, que agora está reforçando a dívida para pagar a dívida anterior. Tudo isso nos põe num ciclo de dependência econômica que havíamos conseguido sair.
A crise econômica, de trabalho, a crise universitária, de todo o sistema científico e tecnológico, está muito forte. Pouco mais de 30% das pessoas são pobres, e uns 10% estão na indigência. Há muita gente que depende do estado. Apesar de produzir certos projetos sociais, [o governo] não produz capacidade de autonomia dessas grandes massas. Não se vê maneira de integrá-las à sociedade como beneficiárias de um plano de curto prazo, que não conduz à construção econômica e cultural coletiva.
CC: Uma das primeiras ações que a sra. fez no seu cargo foi investigar a disparidade de gênero no Judiciário argentino. O que descobriu?
DM: Fizemos uma pesquisa muito grande, de modo que o Judiciário pôde ver a si mesmo também com suas relações internas de gênero. Mesmo em um Judiciário muito igualitário, como é de Buenos Aires, onde há a mesma quantidade de juízes e juízas, onde o Tribunal Superior de Justiça tem mais juízas que juízes, há uma desigualdade no âmbito estrutural.
As mulheres no Judiciário têm menos tempo para se capacitar do que os homens — e, mesmo assim, precisam ser mais capacitadas que eles para chegar ao mesmo cargo. E mesmo assim, chegam ao cargo. Mas qual é a perspectiva com relação aos papéis de gênero que têm as pessoas que repetem esses papéis?
Laura Castanho