Pesquisa mostra que Brasil perde R$ 1 bilhão devido a prática. Em entrevista ao ‘Nexo’, Vivianne Rodrigues de Oliveira analisa o que pode ser feito para reverter o quadro
(Nexo, 30/09/2018 – acesse no site de origem)
Em 2017, 93 mil mulheres registraram queixa por violência doméstica no Brasil, segundo informações do Fórum Brasileiro de Segurança Pública divulgadas em agosto de 2018. Na média, 530 denúncias são registradas por dia. O número deve ser ainda maior, devido à subnotificação e à falta de dados sobre o tema em diversos estados, de acordo com o relatório.
Segundo uma pesquisa do DataSenado de 2015, 29% das entrevistadas dizem já ter sofrido algum tipo de violência doméstica, sendo a maioria dos ataques cometida pelos companheiros (cerca de 40%), e as maiores vítimas são mulheres de baixa escolaridade.
Em agosto de 2017, o relatório “Pesquisa de Condições Socioeconômicas e Violência Doméstica e Familiar”, feito pela Universidade Federal do Ceará, em parceria com o Instituto Maria da Penha, estipulou, após acompanhar a vida de 10 mil mulheres nas nove capitais nordestinas, que o Brasil deixa de gerar aproximadamente R$ 1 bilhão ao ano como consequência da violência doméstica.
A pesquisa apontou diferenças salariais significativas entre mulheres que foram vítimas de violência e aquelas que não foram. E ainda levantou um dado que diz respeito à autonomia das mulheres entrevistadas: 23% das que sofreram violência doméstica afirmam ter recusado ou desistido de alguma oferta de trabalho por oposição do parceiro. Esse número cai para 10% entre as que não foram vítimas de violência.
O Nexo conversou com Vivianne Rodrigues de Oliveira, economista e advogada especialista em violência doméstica, direito de família e direito econômico, para entender o que pode ser feito para reverter o quadro e como o estado brasileiro e suas leis enxergam, hoje, a violência doméstica.
Como a violência doméstica afeta a economia?
VIVIANNE RODRIGUES DE OLIVEIRA Falar de economia é falar de mercado de trabalho. Não existe mercado de trabalho economicamente sustentável sem a força de trabalho da mulher. Nesse aspecto, o mercado que não valoriza a mão de obra feminina ocasiona um deficit de riqueza à nação. Quando uma mulher é agredida, ela é retirada do mercado de trabalho em razão das consequências da agressão, seja ela uma agressão física, emocional, psicológica, sexual ou patrimonial.
Ocorre assim uma perda de renda e de poder aquisitivo. Muitas vezes a renda daquela mulher é a renda total daquela família. E o movimento é cíclico: perda de poder aquisitivo leva à perda da capacidade contributiva da mulher e do interesse por parte do mercado de trabalho.
Por que isso acontece?
VIVIANNE RODRIGUES DE OLIVEIRA Quando a mulher é agredida, ela se afasta do mercado de trabalho. A pesquisa diz que essa mulher se afasta do trabalho 18 dias, em média. Se ela tem carteira assinada, passando de 15 dias de afastamento ela pede auxílio do INSS, então há um ônus para a empresa e para o Estado. Essa mulher agredida também utiliza o SUS (Sistema Único de Saúde), por exemplo.
Quando ela retorna para o mercado de trabalho, e quando a empresa não a demite pelas faltas, gradativamente vai deixando de agregar novas funções dentro daquela empresa, porque ela já está estigmatizada como mulher violentada. Empresa nenhuma vai dar uma melhoria salarial para aquela mulher, e quando ela sai dessa empresa e retorna para o mercado de trabalho, ela continua estigmatizada.
Ela é vítima duas vezes, ela é vítima da violência doméstica e é vítima do mercado de trabalho.
A violência, em sentido amplo, consome 10% do nosso PIB, gerando um prejuízo de R$ 85 bilhões. Com o país violento, a gente deixa de receber incentivo estrangeiro, a nossa moeda perde valor. Só a violência doméstica consome 3%. O Estado não está preocupado ainda com a perda na economia, com a diminuição dessa receita.
A Lei Maria da Penha fala em algum momento de proteção trabalhista?
VIVIANNE RODRIGUES DE OLIVEIRA A lei inovou, ao trazer no bojo do artigo 9º, parágrafo 2º, inciso II, a instituição da interrupção do contrato de trabalho da mulher em situação de violência doméstica ou familiar e uma estabilidade provisória no emprego, por até seis meses.
Nesse caso, é uma manutenção do vínculo trabalhista para a mulher vítima da violência doméstica tipificada na lei e, também, no caso da vítima que necessita de afastamento do ambiente de trabalho, em decorrência da violência sofrida. Essa medida assecuratória é decretada pelo Judiciário, no curso da ação judicial cabível, seja ela penal ou cível.
A concessão da medida protetiva é condicionada à necessidade de a mulher ter preservadas as integridades psicológica e física, ou seja, nos casos em que o autor da agressão ameace a continuidade do labor no local de trabalho da vítima. Em se tratando de continuidade de ameaça ao trabalho da vítima, a medida protetiva deve ser prorrogada quantas vezes sejam necessárias para a mantença da ordem pública no Estado Democrático de Direito.
Agora, a lei Maria da Penha é vista no país como uma lei de prevenção e combate à violência doméstica. Na minha visão ela não é nem uma coisa, nem outra. Ela é uma lei de punição ao agente, porque ela não protege a mulher antes de essa violência acontecer. Quando a mulher busca o Judiciário, busca as delegacias para se proteger, a violência já aconteceu. A lei funciona como garantia de que, ao sermos violentadas em alguma seara do nosso pessoal, o Estado pune aquele agente, mas ele não o combate. Nós não temos políticas públicas de combate ostensivo à violência doméstica, não tratamos sobre isso com nossos estudantes, com nossos universitários, não conversamos abertamente com a sociedade, informando o que a violência que está acontecendo na parede do lado da tua casa influencia na sua [própria] riqueza.
O Estado não está preocupado com isso. Essa perda bilionária é um tipo de discriminação de gênero?
VIVIANNE RODRIGUES DE OLIVEIRA Com certeza. A violência doméstica não só deprecia o capital humano feminino, como também reduz o empoderamento feminino intrinsecamente. Quando essa mulher tem essa força de trabalho menosprezada dentro do mercado de trabalho, ela não volta a ele com a mesma autoestima. e aí começa o ciclo da mulher que se adapta a qualquer função, mesmo que fora da capacidade laborativa dela.
O nosso país caiu 11 posições no ranking de igualdade de gênero; o Brasil ocupa a 90ª posição, entre 140 países. Nós temos muito ainda a fazer. Nós recebemos em média 26,5% a menos do salário de um homem que ocupa a mesma posição. Somos 50% da força de trabalho, ocupamos 43% dos postos de trabalho, e só temos 10% de representatividade parlamentar.
Qual é o perfil da mulher que mais sofre com essa violência e perda econômica?
VIVIANNE RODRIGUES DE OLIVEIRA Normalmente são as mulheres que têm um menor poder aquisitivo e que, ainda que tenham uma renda familiar maior que a do companheiro que trabalha no mercado informal, dependem dele — . não só financeira, mas psicológica ou afetivamente. Em geral são mulheres das classes, C, D e E. Não que não aconteça nas classes A e B, mas a violência é mais relatada nas classes de poder aquisitivo menor, onde esse impacto é sentido de forma mais gritante.
Outro paradoxo é que a mulher agredida sai do mercado de trabalho, não consegue voltar, e vai então para a informalidade. E aí há de novo uma queda do poder aquisitivo dessa mulher. Vira um ciclo: ela leva menos receita para dentro de casa, e levando menos receita, pode passar por uma nova agressão.
A violência doméstica do Brasil é institucionalizada, como resultado de uma sociedade patriarcal. Portanto, uma solução perpassaria a necessidade de diálogo multidisciplinar entre sociedade, governo, mercado e economia. E é imprescindível a conscientização não só da sociedade, mas de todo o poder estatal, no sentido de implementar políticas públicas efetivas de combate e prevenção e, em um cenário mais ousado, quem sabe, erradicar a violência.
NOTA DE ESCLARECIMENTO: Na primeira versão desta Entrevista, uma das respostas de Vivianne Rodrigues de Oliveira afirmava que mulheres agredidas se afastavam do trabalho por um período de 18 dias a 1 ano. A resposta foi reescrita para dar maior exatidão ao trecho, eliminando o tempo máximo de afastamento e indicando apenas o tempo médio dele. O texto foi alterado às 14h47 de 1º de outubro de 2018.
Anita Abdalla