Nova lei é um avanço, mas há que cuidar de sua aplicação
(Folha de S.Paulo, 01/10/2018 – acesse no site de origem)
Há cerca de um ano o Brasil enfrentou o debate público sobre um dilema: Diego Ferreira de Novais havia sido preso, solto e preso novamente, na mesma semana, por ejacular numa passageira e se esfregar em outra, ambas dentro de um ônibus municipal. Operadores do direito, ativistas e a população em geral se dividiram: estupro ou mera importunação? Ele devia ou não ser mantido preso?
Tratava-se de mais um atentado à liberdade sexual de uma mulher, semelhante aos que acontecem quase que diariamente, quando elas estão a caminho de casa, da escola ou do trabalho. E a polêmica levou agora à sanção da lei que altera o Código Penal para definir o crime de importunação sexual: praticar contra alguém, e sem a sua anuência, ato libidinoso com o objetivo de satisfazer a própria lascívia ou a de terceiro.
A iniciativa visa sanar a lacuna que dificultava o enquadramento de determinadas condutas, nas modalidades criminosas até então existentes: contravenção de importunação ofensiva ao pudor, com previsão de pena ínfima; ou crime de estupro, com pena de seis a dez anos de reclusão.
Se por um lado o legislador não omite que o tipo penal foi pensado em resposta aos casos concretos que ganharam forte repercussão, por outro, não há como ignorar que há tempos prevalecia nessas situações a sensação de proteção deficiente do Estado.
A nova lei também descreve que, no caso de estupro de vulnerável —quando a ofendida é menor de 14 anos, ou possui enfermidade ou deficiência mental—, as penas deverão ser aplicadas independente do consentimento da vítima ou do fato de ela ter mantido relações sexuais anteriormente ao crime.
Tratando-se de crimes contra a dignidade sexual, a relativização dessa condição de vítima vulnerável por diversas vezes já representou a desproteção das vítimas menos favorecidas, Outra evolução é a criação do tipo penal que criminaliza a divulgação de cena de estupro de cena de sexo, de pornografia, ou também de nudez, sem o consentimento da vítima, com previsão de aumento de pena para o agente que mantenha ou tenha mantido relação íntima de afeto com ela; ou que tenha agido por vingança ou humilhação. A violência praticada no ambiente virtual, que atinge principalmente meninas e mulheres, tem alcance maior, dada a capacidade de exposição da intimidade da vítima
A despeito do avanço legislativo, não se pode perder de vista a necessidade de avançarmos nas reflexões sobre a forma como a sexualidade feminina é julgada, a partir de uma dupla moral, para homens e mulheres, na qual delas se espera, ainda hoje, o papel do recato.
A nova lei também prevê aumento de pena para as hipóteses de estupro praticado por dois ou mais agentes, o estupro coletivo, ou quando praticado para controlar o comportamento social ou sexual da vítima, o estupro corretivo, violência que vem sendo noticiada por meninas e mulheres lésbicas ou bissexuais.
Outra grande evolução vem com a iniciativa de permitir a ação penal pública sem a necessidade de manifestação da ofendida. A manutenção dessa exigência fortalecia a ideia de que ser vítima de violência sexual configura vergonha, como se fossem as ações dela, e não as do agressor, determinantes para a prática da violência.
De uma maneira geral a nova lei é um avanço, mas a proteção eficiente que se busca só será possível se sua aplicação vier acompanhada do que se convencionou chamar de perspectiva de gênero: olhar cuidadoso para a vítima, sabidamente, em sua grande maioria, meninas e mulheres. Um paradigma que precisa se alterar.
Silvia Chakian de Toledo Santos é Promotora de Justiça da Promotoria Especializada de Violência contra a Mulher (Gevid) do Ministério Público de São Paulo