Denis Mukwege, ginecologista congolês, e Nadia Murad, sobrevivente de escravidão sexual do Estado Islâmico, são os laureados de 2018
(O Globo, 05/10/2018 – acesse no site de origem)
O Prêmio Nobel da Paz foi concedido nesta sexta-feira a dois ativistas que dedicam suas vidas a combater o estupro e a violência sexual como uma arma de guerra: o ginecologista congolês Denis Mukwege, de 63 anos, e Nadia Murad, de 25 anos, da minoria yazidi, que se tornou uma corajosa voz das mulheres que sobreviveram à escravidão sexual praticada pelos extremistas do Estado Islâmico (EI).
O Comitê Norueguês do Nobel — formado por cinco pessoas indicadas pelo Parlamento da Noruega e que desde 1901 escolhe o prêmio da Paz — afirmou que os dois receberam a honraria “por seus esforços para acabar com o uso da violência sexual como uma arma em guerras e conflitos”.
Mukwege trabalhou sem cessar para trazer à luz o drama das mulheres congolesas, mesmo depois de quase ter sido assassinado anos atrás. Murad, que foi capturada pelo EI, contou várias vezes sua história de sofrimento a organizações em todo o mundo, e ajudou a convencer o Departamento de Estado dos EUA a reconhecer o genocídio de seu povo nas mãos do grupo terrorista islâmico.
#MeToo e escândalo na Academia
Num ano em que a campanha #MeToo contra o assédio sexual nos Estados Unidos chamou a atenção do planeta para sobreviventes de agressão sexual e abusos, o Nobel reforçou a campanha global para pôr um fim definitivo ao uso do estupro em massa como arma em conflitos.
Para a brasileira Sonia Correa, coordenadora do Observatório de Sexualidade e Política da Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids (Abia), a premiação também não pode ser entendida sem uma referência ao escândalo de abuso sexual que atingiu neste ano a Academia Sueca, que escolhe os agraciados com o Nobel de Literatura.
A Academia anunciou em maio que não escolheria um ganhador neste ano, depois que um fotógrafo francês que dirige um projeto financiado por ela, Jean-Claude Arnault, foi acusado de agressão sexual por 18 mulheres.
A história de Mukwege
Mukwege trabalha num dos lugares mais traumatizados do mundo: a República Democrática do Congo.
Num hospital simples nas colinas perto de Bukavu — onde durante anos houve parca eletricidade e faltou anestesia — ele fez cirurgias em incontáveis mulheres e se tornou um ídolo para o povo congolês, bem como um defensor internacional pela igualdade de gêneros e pelo fim do estupro nos conflitos armados. O médico viajou por outras partes do mundo igualmente traumatizadas, ajudando a criar programas para as sobreviventes de estupro e escravidão sexual.
— Não é um questão só das mulheres, é da humanidade inteira — disse Mukwege numa entrevista. — Não é um problema só da África. Você vê a mesma coisa em lugares como Bósnia, Síria, Colômbia…
Em 2012, Mukwege fez um discurso na ONU criticando o governo congolês e os de outros países por não fazer o bastante para acabar com “uma guerra injusta que usa a violência contra as mulheres e o estupro como estratégias”.
Sua defesa das mulheres quase lhe custou a vida. Pouco depois do discurso, quando retornou ao Congo, quatro homens armados invadiram sua casa em Bukavu, tomaram seus filhos como reféns e esperaram que Mukwege voltasse do trabalho. No atentado que se seguiu, seu guarda-costas foi morto, mas ele se atirou ao chão e conseguiu sobreviver.
Depois disso, ficou mais de dois meses exilado, mas retornou ao hospital, mesmo correndo riscos.
Mukwege dedicou o Nobel a todas as mulheres vítimas de estupro e violência sexual.
— A violência cometida contra seus corpos não acontece só em nosso país, a República Democrática do Congo, mas em muitos outros — disse, numa entrevista coletiva em seu hospital.
A história de Nadia Murad
Nadia, por sua vez, foi sequestrada pelo EI junto com milhares de outras mulheres e meninas da minoria yazidi quando o grupo terrorista invadiu sua terra natal, no Norte do Iraque, em 2014. Foi selecionada pelo EI para ser estuprada.
Diferentemente da maioria das mulheres que conseguiram fugir do EI, que preferem esconder suas identidades, Nadia, ao escapar, insistiu com repórteres que a identificassem e fotografassem. Ela embarcou numa campanha mundial, falando diante do Conselho de Segurança da ONU, no Congresso americano, na Câmara dos Comuns do Reino Unido e em outras casas políticas em várias nações.
Nadia se confessou exausta por ter que contar repetidamente sua história , mas sempre se lembrava de que outras mulheres Yazidi estavam sendo violentadas no Iraque.
— Só vou voltar à minha antiga vida quando as mulheres no cativeiro voltarem a suas antigas vidas — declarou. — Quando minha comunidade tiver um lugar para ela, e quando eu vir os responsáveis julgados pelos seus crimes.
Nascida e criada na vila de Kojo, no Norte do Iraque, Nadia e sua família se tornaram alvos da campanha de limpeza étnica do EI. Localizada no flanco sul do Monte Sinjar, Kojo foi uma das primeira vilas yazidi a serem tomadas pelo grupo terrorista, em 3 de agosto de 2014.
Os moradores foram reunidos na única escola da cidade, onde mulheres e meninas foram separadas dos homens. Estes, incluindo seis dos irmãos de Nadia, foram postos em caminhões, levados a um campo próximo e executados.
Estuprada por juiz do EI
Em seguida, as mulheres e meninas foram levadas para ônibus. Nadia foi levada para um mercado de escravas, onde foi vendida para um dos juízes do EI. Ele a estuprou várias vezes, espancando-a se ousasse fechar os olhos durante o ato. Quando ela tentou pular uma janela, o homem ordenou que tirasse a roupa e a deixou com seus guarda-costas, que fizeram fila para violentá-la. No fim, Nadia conseguiu escapar.
— Nadia se recusou a ser silenciada — diz a advogada de direitos humanos Amal Clooney, que a representa e que escreveu o prefácio de sua biografia. — Desde que a conheci, ela não só encontrou sua própria voz, mas se tornou a voz de toda mulher yazidi que é uma vítima, de toda mulher que já foi agredida sexualmente, de todo refugiado que foi abandonado.
Em 2016, Nadia foi nomeada a primeira embaixadora da Boa Vontade da ONU para a Dignidade de Sobreviventes do Tráfico Humano . Contou sua história na autobiografia “The last girl” (“A última garota”), recém-publicada.
O título remete a uma frase no livro: “Eu quero ser a última garota no mundo com uma história como a minha”.
No mesmo ano, ela ganhou o Prêmio Vaclav Havel de Direitos Humanos, batizado em homenagem ao escritor tcheco e dissidente que foi presidente de seu país por 14 anos depois da queda do comunismo.
Em agosto deste ano, Nadia anunciou que estava noiva de um ativista Yazidi.
Bachelet saúda vencedores
A alta comissária da ONU para Direitos Humanos, Michelle Bachelet, elogiou os premiados.
— Difícil imaginar duas pessoas mais merecedoras do Nobel da Paz — afirmou. — É o reconhecimento devido a dois ativistas extraordinários, corajosos, persistentes e eficazes contra a praga da violência sexual e o uso do estupro como recurso de guerra.
Dirigindo-se diretamente a Nadia e Muskege, Bachelet acrescentou: “Estou certo de que falo por todos os defensores de direitos humanos quando digo que nós os saudamos, nós os admiramos mais do que palavras podem expressar. Vocês lutaram para que o sofrimento por que as mulheres passaram com a violência sexual fosse reconhecido e confrontado, e para que a dignidade delas fosse restaurada.”
— Precisamos de mais pessoas capazes de se levantar pelos direitos das mulheres como vocês fizeram, pela justiça, pelos direitos das minorias e de todo mundo — concluiu a comissária.
Trump, Kim e Moon, os azarões
Ao conceder o Nobel da Paz a dois campeões da luta contra a violência sexual, a Comissão norueguesa frustrou as apostas de muitos de que os ganhadores seriam o presidente americano Donald Trump, o líder norte-coreano Kimg Jong-un e o presidente sul-coreano Moon Jae-in, que iniciaram a tarefa hercúlea de tentar desnuclearizar a Península coreana, mas até agora só alcançaram uma détente ainda incerta.