Suponhamos uma ligação telefônica: um homem liga para o pronto socorro e diz que está com uma dor estranha no peito, o braço direito está formigando, está com dificuldade de respirar. Do outro lado do fio, pelas informações, um atendente supõe que o homem está tendo um ataque cardíaco e toma providências urgentes. Agora, imaginemos que uma mulher telefona para o pronto socorro e diz que não está se sentindo bem, que está com dores no estômago, o braço está formigando etc. A pessoa do outro lado da linha logo imagina: ela deve ter brigado com o namorado, está nervosa, não deve ser nada. Manda tomar um analgésico e descansar. Quando, depois de algum tempo é atendida, é tarde demais: estava tendo um ataque cardíaco.
(Jornal da USP, 22/11/2018 – acesse no site de origem)
Esses dois exemplos não são ocasionais, eles revelam como alguns profissionais, inclusive da saúde, têm uma visão preconceituosa com relação ao sexo do paciente. Essas concepções se colam ao sexo biológico. Atribuímos aos indivíduos de sexo biológico masculino ou feminino comportamentos, valores, modos de agir. Esse conjunto composto de “sexo biológico + comportamentos sociais” compõe o que denominamos gênero.
Os exemplos dos problemas cardíacos citados levaram algumas cardiologistas a um desafio: por que as mulheres relatam sintomas diferentes dos homens? Essa pergunta levou-as a pesquisar o que acontece no sistema circulatório feminino que faz com que elas descrevam sintomas diferentes dos homens. Ao fazer essa pergunta, evidentemente abandonaram uma visão preconceituosa de gênero e foram investigar a mecânica da circulação sanguínea cardíaca. Resultado: constataram que os mecanismos que provocavam os sintomas eram diferentes para homens e mulheres.
Poderíamos avançar relatando inúmeros enganos e erros. Contudo, alguns graves resultados errôneos de pesquisas feitas com animais apenas do sexo masculino conduziram a consequências perniciosas. Ignorando as diferenças sexuais na fase da pesquisa, os resultados foram estendidos a toda a população humana, portanto a homens e mulheres. Os problemas surgiram nos efeitos diretos ou indiretos das medicações. Além, é claro, dos enormes desperdícios financeiros. Em consequência, muitas associações de financiamento passaram a exigir que as pesquisas incluíssem os sexos (dos animais ou pessoas) desde o início.
Os exemplos dos problemas cardíacos citados levaram algumas cardiologistas a um desafio: por que as mulheres relatam sintomas diferentes dos homens?
Verificou-se também que não bastava incluir sexo, era importante incluir gênero, ou seja, os fatores ambientais, emocionais, sociais que envolvem os indivíduos.
Ao adotar essa nova perspectiva – que introduz a presença da dimensão sexo biológico e gênero – a ciência avança e inova.
Em fevereiro de 2011, a “Comissão Europeia” de pesquisa e inovação constituiu um grupo de especialistas para atuar no programa Ciência e Sociedade. Esse programa focava dois objetivos: “fornecer aos cientistas e engenheiros os métodos de análise que, ao incluir sexo e gênero, os levassem a novas ideias e a excelência em pesquisa”. Reuniram-se sessenta especialistas da Europa (Alemanha, Espanha, França, Holanda e Bélgica), Estados Unidos e Canadá em sete reuniões. Nessas reuniões, analisaram os resultados das respectivas pesquisas que incluíam sexo e gênero e selecionaram para publicação os estudos de casos para fornecer os métodos científicos que deveriam servir à ciência básica assim como ao desenvolvimento da engenharia e da tecnologia. Reuniram pesquisas sobre alimentos e nutrição, saúde e medicina, transporte, assim como comunicação científica. Os resultados serão avaliados em 2020.
Para dar uniformidade às pesquisas e poder compará-las, partiram da definição do que é sexo e o que é gênero:
O termo sexo se refere às qualidades características das mulheres e dos homens conforme seus órgãos reprodutivos e funções baseadas na fisiologia e em seus cromossomos. Portanto, por sexo classificam-se os seres vivos como masculinos, femininos e intersex.
O termo gênero – um processo sociocultural – refere-se às atitudes culturais e sociais que dão forma e sancionam como feminino ou masculino o comportamento, os produtos, as tecnologias, o ambiente e o conhecimento.
Se a ciência no mundo todo caminha incorporando sexo e gênero em suas pesquisas, na produção do saber em todas as áreas do conhecimento, o que acontece no Brasil que se procura confundir os legisladores e as pessoas de senso comum distorcendo inteiramente o significado de sexo e gênero?
O que significa a pergunta colocada no documento da Frente Parlamentar Evangélica da Câmara dos Deputados que propõe “Libertar a educação pública do autoritarismo da ideologia de gênero, da ideologia da pornografia e devolver às famílias o direito à educação sexual das suas crianças e adolescentes”? O que entendem por “ideologia de gênero”? Como associaram gênero com pornografia?
A USP é o exemplo de uma Escola Democrática. Aqui gênero é entendido na complexidade dos seres humanos, com respeito à liberdade de ensino, pesquisa e difusão do conhecimento. Ideias variam, há confrontos e do debate resultam novos caminhos para o conhecimento científico.
De onde surge a ideia de que há uma ideologia de gênero? O conceito de gênero não é autoritário, não pertence a um único partido politico e não desrespeita qualquer pessoa.
A universidade brasileira, especialmente a Universidade de São Paulo (da qual faço parte), é aberta ao debate, inclui pensadores das mais diversas correntes políticas e ideológicas, das diversas religiões, de todas as etnias e de diversas classes socioeconômicas. O debate aqui é amplo, variado, desde sua fundação em 1934. Mesmo nos períodos em que a sociedade viveu sob a censura, ainda assim a USP nunca fechou suas portas.
Hoje, independentemente dos resultados eleitorais no Estado ou no âmbito federal, a USP continua seu caminho realizando Jornadas de Ciências para capacitar professores da rede pública, faz avaliação da qualidade de educação e colabora com as pesquisas internacionais como, por exemplo, na nova base de dados para o atlas genômico do câncer, além de continuar formando profissionais das mais diversas áreas na graduação e na pós-graduação.
A USP é o exemplo de uma Escola Democrática. Aqui gênero é entendido na complexidade dos seres humanos, com respeito à liberdade de ensino, pesquisa e difusão do conhecimento. Ideias variam, há confrontos e do debate resultam novos caminhos para o conhecimento científico. Percorremos o espaço nacional, levamos e trazemos conhecimentos para todas as partes do mundo. O Brasil só tem a ganhar com a total liberdade das ideias.e
Bibliografia
- “Jornada de Ciências traz capacitação para professores da rede pública de SP”. Disponível em: jornal.usp.br/?p=203943
- “Relatório apresenta propostas para avaliar qualidade da educação”. Disponível em: jornal.usp.br/?p=194975
- “Nova base de dados para atlas genômico do câncer é destaque naScience”. Disponível em: jornal.usp.br/?p=206219
Eva Alterman Blay é Professora Emérita da Universidade de São Paulo