Trata-se de luta pela igualdade de direitos. Não é pauta comunista
(O Globo, 12/01/2018 – acesse no site de origem)
Como enfrentar a epidemia de violência que dizima mulheres, quando autoridades responsáveis pela execução e normatização de políticas públicas reforçam preconceitos, desqualificam denúncias de violações de direitos e fortalecem a estrutura social machista, pelo uso da linguagem rasa e agressiva das redes sociais?
Ainda na primeira semana de 2019, ao menos 21 mulheres foram mortas por namorados ou companheiros. Os números crescentes assombram e atingem mulheres cada vez mais jovens, desafiando ações efetivas e complexas não só de punição, mas de acolhimento, prevenção e informação. As medidas previstas na Lei Maria da Penha — reconhecida internacionalmente como uma das melhores legislações sobre a matéria — têm sido insuficientes para barrar o horror, que seria ainda mais devastador sem a existência da norma. Alguns projetos, como o Violeta — idealizado pela juíza Adriana Mello, do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, que soluciona as denúncias em até quatro horas — são ferramentas importantes para evitar a escalada da violência. Nada, no entanto, tem impedido que mulheres sejam mortas, mesmo com medidas de proteção na bolsa.
Elizangela, Iolanda e Maria Dalvina mal haviam sido sepultadas, quando a nova equipe do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) publicava uma retificação no edital que avaliará as obras didáticas e literárias, que serão distribuídas aos alunos da rede pública. No texto, foi suprimido o compromisso educacional com a agenda da não violência contra a mulher. Na última quinta-feira, denunciada a omissão, felizmente o governo retrocedeu. A insegurança causada por discursos erráticos, entretanto, especialmente no que diz respeito aos direitos fundamentais, produz danos irreparáveis, notadamente quando conjugados com a aversão ao feminismo, com perseguições virtuais a militantes e com pregações que reduzem o papel da mulher a membro de um grupo familiar, subtraindo-lhe a subjetividade.
Para que se compreenda que mulher não é propriedade de homem, é preciso desenvolver outra consciência de gênero, garantindo a igualdade de direitos, impedindo que jovens reproduzam o comportamento agressivo, muitas vezes vivenciado na própria casa. Daí porque não se pode admitir que feminismo e gênero sejam evitados nos bancos escolares, como se o fim do preconceito e a compreensão do respeito e da dignidade, como valores inegociáveis, devessem ser repelidos.
Não há possibilidade de vencer o ódio e desconstruir uma sociedade machista e patriarcal, que sempre conviveu com a prática de feminicídios, senão pelo conjunto integrado de ações que passam necessariamente pela linguagem, pela saúde e, principalmente, pela educação. Repressão sem informação vira violência e medo. Feminismo se aprende também na escola.
A comunicação desprovida de densidade que se estabelece nas redes pode ser eficiente em período eleitoral, para mobilizar torcidas e potencializar confrontos. Na vida real, contudo, desagrega e pouco ou nada contribui para que o poder público se responsabilize por políticas afirmativas, que evitem tantas mortes desnecessárias, cruéis e prematuras.
Ocupar o vergonhoso quinto lugar em números de feminicídios no mundo e conviver diariamente com mulheres sendo brutalmente assassinadas deveriam ser motivos suficientes para que não tolerássemos atitudes que naturalizam a violência, especialmente piadas e adjetivos que desqualificam as mulheres. Linguagem é poder. Violência não é “mimimi”. A escolha do espaço virtual como meio prioritário de comunicação tem nos levado a um processo de infantilização e irresponsabilidade que precisa ser vencido para o regular exercício da democracia.
Não é o caso de torcer contra ou a favor. Aliás, torcidas organizadas são do que menos precisamos neste momento. Precisamos de respeito, clareza na comunicação e compromisso com a Constituição e com a longa estrada civilizatória que nos trouxe até aqui. Feminismo é luta pela igualdade de direitos. Não é pauta comunista ou bandeira ideológica. Quem não apoia a igualdade compactua com os crimes cometidos.
Andréa Pachá é juíza e escritora