É inaceitável a inércia do Estado ante o feminicídio
(Folha de S.Paulo, 03/02/2019 – acesse no site de origem)
O feminismo é a única saída para as mulheres do Brasil e do resto do mundo onde o patriarcado impera e a população feminina não tem nem a garantia de seus básicos direitos humanos. Aquelas que já entenderam isso têm a esperança e a luz dentro de si. As demais perambulam na escuridão. Por isso, sofrem todo tipo de agressões e injustiças.
São assassinadas cerca de 10 mulheres por dia no Brasil, vítimas de feminicídio, enquanto outras 144 são espancadas por seus companheiros ou ex-companheiros, o que significa uma agressão a cada dez minutos. Os crimes sexuais obedecem a uma escalada parecida, a ponto de médicos e curandeiros serem proeminentes na lista de abusadores. Até João de Deus revelou-se suspeito de numerosos ataques sexuais durante suas atividades consideradas curativas e salvadoras de vidas.
Diante da alardeada incapacidade feminina para autodefesa e da falta de devida atenção à palavra das vítimas quando ocorre um delito contra a dignidade sexual, muitas mulheres não reportam à polícia os crimes de que foram vítimas, ou, quando o fazem, nem sempre são tomadas as medidas cabíveis.
Não há direitos sem luta. Não há justiça sem respeito às leis. Não há proteção para quem já baixou as armas e se entregou. Sair de um relacionamento insatisfatório, agressivo ou perigoso é medida necessária para salvar vidas.
As Delegacias de Defesa da Mulher existem justamente para evitar essas mortes anunciadas. Nesse aspecto, é importante registrar o posicionamento firme das atrizes e funcionárias da TV Globo que saíram em defesa de uma outra mulher que acusava o ator José Mayer de ataques sexuais durante gravações de uma novela.
Sim, “mexeu com uma, mexeu com todas”. É contra todas nós que esses crimes são cometidos. Trata-se de uma terrível dominação que toda a população feminina precisa entender e rechaçar. O isolamento da mulher no lar pode ser seu cadafalso.
Embora cuidar de marido e filhos possa ser gratificante, muitas vezes se transforma em solidão, abandono e dor. Mulheres isoladas são presas fáceis para o dominador, suscetíveis a pressões, ao medo e ao confinamento. Como dizia Cássia Eller ao interpretar a canção “Malandragem”, “quem sabe o príncipe virou um chato, que vive dando no meu saco, quem sabe a vida é não sonhar…”
É nosso dever fazer cumprir a Lei Maria da Penha, sendo imprescindível que o socorro à pessoa ameaçada chegue a tempo de salvar vidas. É inaceitável que as mortes anunciadas se concretizem diante da inércia do Estado e das autoridades competentes.
A ministra de Direitos Humanos, Damares Alves, declarou-se não-feminista e ainda desdenhou da população LGBTI, também vítima de agressões por motivo de gênero, ao dizer com ironia que “meninas vestem rosa e meninos vestem azul”.
Acredito que a ministra não tenha percebido que os tradicionais papéis dos gêneros destroem as vidas das mulheres e de seus respectivos filhos, enquanto incutem nos homens o inacreditável “direito-dever” de dominar, mesmo que seja pelo assassinato.
Luiza Nagib Eluf é advogada criminalista, ex-procuradora do Ministério Público de São Paulo e ex-secretária dos Direitos da Cidadania do Ministério da Justiça (1995, governo FHC)