Veja histórias de quem escapou da violência e entenda como as novas regras para armas podem agravar os casos de feminicídio
(Claudia, 20/02/2019 – acesse no site de origem)
O amanhecer do dia 4 de janeiro, uma sexta-feira, poderia ter sido o último de Larissa*, 27 anos, que sobreviveu a dez facadas. Às 21 horas da noite anterior, ela havia saído sozinha da igreja e voltava para a casa onde mora em um município da Grande São Paulo. Ali, compartilha o quintal com outras residências, todas ocupadas por sua família. Vinha com o prognóstico da pastora de que uma energia escura a rondava; era preciso ficar atenta.
Sem pensar nisso, entrou em mais uma discussão com o ex-companheiro, de 28 anos, com quem manteve um relacionamento por seis anos. Eles estavam separados desde o ano anterior, mas ainda dividiam a pequena casa. Após a briga, aos gritos, ouvida com clareza pelos familiares vizinhos, Larissa foi dormir no sofá. Ao lado, no piso, o ex e a filha deles, de 5 anos, dividiam um colchão.
Antes das 6 horas da manhã ele acordou e foi ao quintal. Os parentes o viram pensativo. Em seguida, entrou em casa, tapou a boca de Larissa com uma das mãos e desferiu uma série de golpes contra ela usando uma faca que pegara na cozinha. Os gritos irromperam, mas ninguém interveio. Afinal, há até um ditado alertando que não é correto se intrometer em problemas de casal.
Larissa juntou forças, arrancou o instrumento que seria usado para matá-la das mãos de seu algoz e correu porta afora. Só quando ela alcançou o pequeno quintal, banhada pelo sangue que escorria da barriga, das costas e dos braços, os vizinhos entenderam a gravidade da situação. O homem saiu correndo e foi atropelado por uma carreta que passava na rodovia a 300 metros da casa. Socorrido por uma ambulância, foi preso em flagrante e indiciado por violência doméstica e tentativa de feminicídio.
“Eu já tinha ido à delegacia denunciar as agressões, mas me disseram que não poderiam fazer nada porque eu não tinha provas. Agora eu tenho”, conta Larissa, mostrando a pele recém-costurada com cicatrizes em diferentes partes do corpo, entre elas um corte que atravessa do peito até o umbigo.
O trauma não ficará só na pele ou em suas memórias. “Minha filha acordou com a movimentação e viu o ataque bem de perto”, lembra. Após uma semana no hospital, Larissa voltou para casa e vive com medo de que o agressor consiga se livrar da prisão e volte para terminar o que começou. “Era para eu estar morta.” A mãe dela lavou o sangue do quintal, colocou os lençóis de molho e devolveu a faca à gaveta da cozinha.
O assassinato foi o desfecho da história de 4 645 mulheres no Brasil em 2016, segundo o último levantamento do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada e do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. São quase 13 mortes a cada 24 horas, a maioria de mulheres negras e pobres. Em meio a esses números estão as vítimas de feminicídio, crime cometido por alguém com quem mantinham laços afetivos ou por um desconhecido em razão de menosprezo à sua condição de gênero. Estima-se que até 80% dos assassinatos de mulheres sejam feminicídios, mas a proporção é difícil de ser mensurada, já que não há levantamentos nacionais detalhados sobre o tema, conforme aponta o Mapa da Violência, da Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais.
Entre os estados que já lançaram balanço dos registros de sua segurança pública, São Paulo apresentou crescimento de 27% de feminicídios de janeiro a novembro de 2017. No Rio de Janeiro, foram 70 casos em 2018. Apesar dos dados difusos, sabe-se que houve denúncias de 547 tentativas de feminicídio no primeiro semestre do ano passado ao Ligue 180, central de atendimento à mulher.
Fogem das estatísticas definitivas aquelas que, como Larissa, após fitarem a morte violenta, conseguiram escapar, resistir e sobreviver. Só entre as que apareceram nos noticiários foram 36 vítimas de tentativa de feminicídio nos primeiros 20 dias deste ano, de acordo com levantamento independente coletado por Jefferson Nascimento, doutor em direito internacional pela Faculdade de Direito da USP. Outras 71 perderam a vida.
Entre as sobreviventes, há histórias como a de uma jovem de 19 anos atacada a golpes de pá pelo namorado; de uma mulher perseguida e baleada pelo ex-marido, policial militar que não suportava vê-la seguindo em frente e entrando em um novo relacionamento; de outra que foi atropelada por um companheiro ciumento; de uma médica, grávida de sete meses, espancada pelo marido, que, diante da polícia, assumiu que iria matá-la.
Posse de armas e o Brasil na contramão do mundo
Muitas vezes, a sobrevivência dessas mulheres se dá justamente pela impetuosidade de quem a ataca, a falta de planejamento e o uso de instrumentos improvisados. “As chances de se defender de uma arma de fogo, que tem a função de matar, são muito menores do que de uma faca”, explica Teresa Cabral, integrante da Coordenadoria da Mulher em Situação de Violência Doméstica e Familiar do Poder Judiciário (Comesp) do Tribunal de Justiça de São Paulo.
Cerca de metade dos homicídios de mulheres no Brasil é por arma de fogo, de acordo com dados do Ministério da Saúde referentes a 2016, reunidos pelo Instituto Sou da Paz. As previsões indicam o crescimento desse número após o decreto aprovado pelo presidente Jair Bolsonaro, em janeiro, que alterou trecho da regulamentação sobre o Estatuto do Desarmamento, de 2004, para flexibilizar a posse de armas de fogo. Agora, mediante autorização, pode-se ter em casa ou em estabelecimento comercial até quatro armas. A medida impõe que o dono do armamento tenha um cofre para guardá-lo a fim de evitar que crianças e idosos venham a se ferir acidentalmente. Além disso, para conseguir a permissão, será necessário passar por avaliação psicológica e frequentar aulas de tiro. E não está legalizado o porte fora de casa.
Entretanto, restringir as armas ao ambiente privado não é garantia de segurança para as mulheres. É ali que cerca de 30% delas morrem, de acordo com dados do Mapa da Violência, caracterizando a casa como o local mais perigoso para a mulher. “As armas se tornam mais um fator de risco. Permiti-las nesse âmbito é criar o cenário ideal para mais mortes em uma sociedade marcada pela dominação do homem sobre as mulheres”, diz Adriana Ramos de Mello, do 1º Juizado de Violência Doméstica do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. “O governo precisará repensar essa política para evitar que cresça a violência de gênero”, completa.
O Brasil vai na contramão das políticas de desarmamento adotadas no mundo, com indicativos de redução de assassinatos de mulheres por arma de fogo. É o caso da África do Sul, que, em 2000, aprovou uma legislação de controle de armas e viu a proporção de homicídios a tiros por parceiros cair de 34 para 17% entre 1999 e 2009, conforme aponta relatório da organização International Action Network on Small Arms (Iansa). Por outro lado, cada 10% de aumento de posse de armas representa 7,8% mais morte de mulheres por conhecidos, constatou estudo de professores da Universidade de Boston, nos Estados Unidos.
Futuro sombrio
Moradora do município paraibano de Bom Jesus, que tem cerca de 3 mil habitantes e 50 quilômetros quadrados, a conselheira tutelar Francicleia Lopes de Souza, 34 anos, tem alojadas em seu corpo duas balas disparadas por um revólver Taurus calibre 38 sem registro. Em 12 de janeiro, como fazia quase diariamente, ela recebeu dois vizinhos para tomar café da manhã em casa. Um deles era Carlos Antônio Gonçalves, 48 anos, que morava próximo havia cerca de um ano. Eles mantinham uma relação amigável, mas nada além disso. Nesse dia, o humor do homem mudou da simpatia habitual para ríspido e exaltado.
“Ele disse que gostava muito de mim. Eu respondi que ele era um ótimo vizinho”, conta ela. A resposta não agradou a Carlos, que sacou uma arma e berrou que, se não fosse para ficar com ele, ela não ficaria com ninguém. “Com a arma apontada pra mim, tive poucos segundos para pensar. Como não podia correr para dentro de casa, onde meus filhos dormiam, saí em direção ao portão”, lembra, citando as crianças de 9 e 12 anos, frutos de um casamento que terminou há três anos.
O primeiro disparo foi em direção ao peito, mas ela se abaixou e a bala acertou de raspão na cabeça. O segundo tiro perfurou-lhe as costas e o terceiro atingiu seu braço colocado em frente ao rosto para se proteger. Ela caiu no chão acreditando que em poucos segundos estaria morta, mas foi socorrida pelos vizinhos. Ao perceber que não conseguira matar a mulher desejada, Carlos atirou contra a própria cabeça, morrendo na hora.
Francicleia nunca imaginou que o agressor nutria sentimentos por ela nem que carregava uma arma – ele não tinha posse, segundo o delegado Glauber Fontes, da Delegacia Seccional de Cajazeiras, onde o caso foi registrado como feminicídio tentado. Francicleia nunca tinha vivido outros episódios de violência, como é comum nos casos de feminicídio, em que há histórico de agressões domésticas antes do assassinato da mulher.
A Lei Maria da Penha, sancionada em 2006 como forma de proteger as mulheres da violência doméstica, prevê medida protetiva especial para retirar o direito à posse de armas de homens denunciados no âmbito da lei. “É essencial que esse dispositivo seja aplicado, e de forma célere, mas, para além dele, é necessário que todos os aparatos previstos pela lei funcionem, como os serviços de proteção em casos de ameaça”, explica Renata Giannini, coordenadora da área de segurança pública e Justiça criminal do Instituto Igarapé.
Em São Paulo, após o decreto de flexibilização, membros do Núcleo Especializado de Promoção e Defesa dos Direitos das Mulheres da Defensoria Pública prepararam modelos de pedidos desse tipo de medida e distribuíram aos defensores. No entanto, esperar que exista uma denúncia para que o agressor perca o direito à posse de armamento muitas vezes é insuficiente – pode ser que a primeira agressão seja fatal. Além disso, a existência da arma de fogo, guardada no cofre ao qual só o homem tem acesso, se torna uma ameaça constante às mulheres, que se sentem desencorajadas a denunciar qualquer episódio de violência.
Para tornar ainda mais complexo o cenário, é comum que as mulheres passem por dificuldade ao pedir ajuda às forças de segurança. Nas experiências da família de Larissa, a vítima atacada a facadas, as denúncias à polícia nunca fizeram cessar os ataques. Uma de suas sobrinhas, atualmente com 23 anos, já havia sido esfaqueada pelo ex-marido em duas ocasiões, além de sofrer repetidas violências físicas e ameaças, que por vezes atingiam também sua filha, ainda bebê. A criança, hoje com 8 anos, tem consciência das agressões do pai.
Após um dos episódios, policiais orientaram o agressor a esconder instrumentos que havia usado. Quando a filha era alvo, argumentavam que não poderiam prendê-lo, pois era pai da criança. Ela só se viu livre depois que ele morreu, vítima de um acidente de carro, há três anos. Entre as parentes de Larissa, a maioria é vítima de violência doméstica.
A intensidade da agressão é justificada de acordo com o comportamento da mulher – se ela provocava o parceiro ou revidava os tapas – ou pelo gênio forte do homem. O ex-companheiro de Larissa era um dos mais dóceis, segundo sua irmã. “Cozinhava bem, falava baixo. Nunca imaginei que chegaria a esse ponto”, conta. É comum que elas tenham medo do parceiro. “Conhecemos os homens que temos dentro de casa”, resume uma delas.
*Nome trocado para preservar a identidade da entrevistada