Ao menos 119 mulheres foram mortas no Brasil em janeiro por causa de seu gênero
(Folha de S.Paulo, 08/03/2019 – acesse no site de origem)
Foi dentro do quarto do filho de três anos que a professora Rosângela da Silva, 32, foi surpreendida pelo ex-namorado em uma noite de janeiro. O empresário Alexandro Lautenschlager, 31, arrombara e invadira sua casa, inconformado com o fim da relação.
Ela registrou boletim de ocorrência por ameaça e conseguiu medida protetiva contra ele. Dias depois, porém, desapareceu. Foi encontrada morta, à beira de um rio, no interior de Mato Grosso.
A professora é uma das 179 mulheres que, em janeiro deste ano, foram vítimas de feminicídio ou sobreviveram a uma tentativa de feminicídio noticiados no país. É uma média de seis crimes por dia.
Levantamento feito pela Folha para marcar o Dia Internacional da Mulher, celebrado nesta sexta (8), mostra que 71% dessas mulheres —as que morreram e as que sobreviveram— foram atacadas pelo atual ou ex-companheiro. De cada 4 suspeitos, 1 tinha histórico de violência ou antecedentes criminais.
“A violência contra a mulher não ocorre uma só vez. Ao contrário, é padrão de comportamento daquele homem no relacionamento com suas parceiras e com outras mulheres“, diz a promotora Valéria Scarance, coordenadora do Núcleo de Gênero do Ministério Público de São Paulo.
As estatísticas foram compiladas pela Folha a partir de um levantamento feito pelo advogado Jefferson Nascimento, pesquisador da USP, que se baseia em casos publicados na imprensa brasileira.
A Folha analisou notícias e tabulou dados disponíveis sobre cada caso. São 119 mortes e 60 tentativas de feminicídio.
A análise, que abrange crimes ocorridos em 25 estados, mostra que a mulher vitimada pelo crime tem, em média, 33 anos, e o agressor, um pouco mais: 38 anos.
O inconformismo com o fim do relacionamento aparece entre os motivos mais citados para a agressão (18%), logo atrás de brigas, ciúmes ou suposta traição (25%).
No caso da professora de Mato Grosso, o relacionamento começou bem. Lautenschlager, que ela conheceu numa balada de final de semana, a presenteava com frequência e parecia educado e prestativo, segundo familiares.
“Enchia a casa de flores, fazia comidas diferentes”, diz Quitéria da Silva, 48, irmã de Rosângela. Alguns meses depois, porém, ela começou a se queixar. Ela decidiu pedir um tempo no relacionamento. Lautenschlager, principal suspeito da morte da professora, não se conformou.
O empresário foi detido na fronteira com o Paraguai, dias depois do desaparecimento da ex-namorada. Ele não confessou o crime e se manteve calado, mas continua preso.
Scarance destaca que a separação é um dos principais fatores de risco para o feminicídio, quando associada à perseguição incessante, menções a suicídio pelo agressor e histórico de violência.
Dos casos analisados pela Folha, pelo menos 11 culminaram no suicídio do agressor. Em 15 deles, crianças presenciaram o crime.
“Empoderadas, as mulheres são incentivadas a não ficarem em relacionamentos abusivos. Esses rompimentos colocam a vida das mulheres em risco. A vontade da mulher acaba, como sempre, não sendo respeitada”, diz a juíza aposentada Maria Berenice Dias, autora de “A Lei Maria da Penha na Justiça” e referência no combate à violência contra a mulher.
O ciúme, outro dos principais motivos do feminicídio, foi o que motivou a morte da servidora pública Rosane Apolinário, 42, em Forquilhinha (SC), cidade de 26 mil habitantes, no final de janeiro.
Ela foi estrangulada e depois degolada pelo marido, Vanderlei Dahmer, 54, com quem tinha um filho adolescente. O homem foi preso e confessou o crime, dizendo ter sido motivado por ciúmes e que suspeitava de traição.
Poucos dias depois, outro morador da cidade foi indiciado sob suspeita de ser mandante da morte da esposa, Nely Fernandes Schuvinski, em 2017. Ele nega a suspeita.
“A verdade é que tem muitas Rosanes e Nelys que sofrem com a mesma situação de violência”, diz a psicóloga Joseane Nazário, 34, uma das coordenadoras de um programa de prevenção à violência contra a mulher em Forquilhinha, em parceria com a arte-educadora Andreza de Oliveira.
Depois do crime, a procura pelo programa aumentou. Em 2018, apenas quatro mulheres participaram do projeto. Neste ano, dez já se inscreveram.
“É muito difícil porque o ciclo da violência acontece de forma sutil”, diz Nazário. “Às vezes são agressões verbais, morais, financeiras. O companheiro impede a mulher de trabalhar, reclama de suas roupas, e diz que a ama, que quer protegê-la.”
No levantamento da Folha, 47% dos crimes ocorreram na casa da vítima. A faca for a arma mais usada (41%), seguida por armas de fogo (23%).
Nos casos estudados, 74% dos crimes cometidos com armas de fogo resultaram em morte —contra 59% no caso de agressões a facadas.
LEI DO FEMINICÍDIO, DE 2015, PREVÊ PENA DE 12 A 30 ANOS
Previsto no Código Penal desde 2015, o feminicídio é um tipo de homicídio, cometido “contra uma mulher por sua condição de sexo feminino” (a palavra “gênero”, na redação inicial do projeto, foi trocada por “sexo feminino” para aprovação do Congresso).
“Considera-se que há razões de condição de sexo feminino quando o crime envolve: violência doméstica e familiar; menosprezo ou discriminação à condição de mulher”, diz o texto da lei.
Feminicídio é crime hediondo e prevê reclusão de 12 a 30 anos, acima dos 6 a 20 anos no caso de homicídio simples. O tempo de detenção sobe se a vítima for gestante ou parturiente, se o crime ocorrer diante de descendentes ou ascendentes da vítima e descumprindo medidas protetivas. Especialistas afirmam que o crime é subnotificado.
Estelita Hass Carazzai , Fernanda Canofre , Júlia Barbon , Júlia Zaremba ePaula Sperb