Não há um jogo de causa-consequência na resposta dos conservadores aos avanços pontuais das mulheres
Lucía é uma menina de 11 anos. Seria uma criança anônima da cidade de Tucumán, no norte da Argentina. Não é mais, e a razão é assustadora. Violentada pelo namorado da avó, engravidou de um estupro. A menina chegou ao hospital por “dores estomacais”, sequer sabia da gravidez. Enquanto o hospital oferecia medicamentos para acelerar o desenvolvimento fetal, a família buscava apoio nos movimentos de mulheres nacional “Ni una menos” e #NiñasNoMadres. Lucía tentou duas vezes suicidar-se, enquanto as autoridades a transformavam em um objeto de disputa moral sobre o direito ao aborto.
(El País, 08/03/2019 – acesse no site de origem)
Em um país em que o aborto por estupro é autorizado, porém nem sempre respeitado, importa saber, o consentimento de Lucía foi explícito. Em suas palavras, “quero que tirem o que o velho colocou dentro de mim”. Mas seu desamparo foi ignorado: foi levada a uma cesárea forçada com 23 semanas de gestação e há poucas chances de o recém-nascido sobreviver. O mais assustador desta tragédia é que este não foi um evento isolado, resultado de médicos torturadores. É uma estratégia deliberada de responder à onda verde que tomou as ruas de Buenos Aires e de dezenas de cidades pelo país, em 8 de agosto de 2018. O país esteve muito perto da descriminalização do aborto e a melhor maneira de responder é por meio do backlash, uma palavra sem tradução oficial ao português, e cada vez mais utilizada para, equivocadamente, explicar histórias como a de Lucía.
Backlash foi título de um filme de Hollywood nos anos 1940. O enredo do drama é de uma mulher acusada pelo marido de um crime cometido por ele. Era inocente, porém seu testemunho era ignorado. Foi a publicação de “Backlash: the undeclared war against women”, de Susan Faludi, nos anos 1990, que fez o conceito ganhar o léxico jurídico e os movimentos sociais. Backlash seria a resposta dos conservadores aos avanços do feminismo: como as mulheres foram à Suprema Corte no Brasil para descriminalizar o aborto, haveria um backlash no Congresso Nacional com o estatuto do nascituro; como as mulheres foram às ruas na Argentina, haveria um backlash nos serviços de saúde para atender meninas vítimas de estupro. Há um erro importante no uso do conceito––backlash não é consequência do que fizeram as mulheres no campo da política, mas, como no filme de quase um século, é simplesmente uma maneira de se contar a história do feminismo pelas lentes do poder masculino. Não é causa-consequência o jogo provocado pelo backlash, mas, apenas, a permanente resistência do patriarcado aos movimentos de justiça social como o feminismo.
Meninas estupradas têm seus direitos violados nos serviços de saúde muito antes da onda verde––há casos no Brasil, Peru ou no Paraguai, quase todas de meninas anônimas e pobres. Backlash é uma disputa sobre quem muda a história e quem tem a autoridade de contá-la: enquanto as mulheres tomavam as ruas do Brasil com o movimento #EleNão, houve homens que se lançaram como analistas políticos para explicar a vitória de Jair Bolsonaro como um backlash ao feminismo. Não há backlash provocado pelo feminismo, mas o permanente uso do poder para manter o status quo de coerção reprodutiva às meninas e mulheres. Backlash nada mais é do que “culpar a vítima” por não cumprir com o destino traçado pelo patriarcado.
Os médicos e juízes que torturaram Lucía o fizeram porque ignoram o sofrimento de meninas violentadas, porque são misóginos, porque acreditam que suas crenças privadas devem regular a vida pública, especialmente àquelas mais pobres dependentes dos serviços públicos de saúde. Não foram os milhares de lenços verdes que provocaram o backlash na lei de aborto na Argentina, ampliando as barreiras de acesso aos serviços––ao contrário, é o medo da mudança que amplifica a violência e a crueldade da resposta. Mas a misoginia já precisa estar instalada em uma sociedade para que o backlash seja um instrumento para punir a vítima. Qualquer ordem moral hegemônica, como são as religiões católica e evangélicas na América Latina e Caribe, faz uso dos instrumentos de poder disponíveis para manter-se soberana. A brutalidade do backlash é um sinal da força do feminismo e do temor de sua força. É nosso papel, no entanto, disputar quem e como se conta essa história. Um primeiro passo é abandonando o conceito de backlash no feminismo. O segundo, e mais importante, é pondo Lucía no centro do debate público sobre aborto––não é uma conversa sobre abstrações de leis ou dogmas, mas sobre a vida de meninas e mulheres.
Debora Diniz é antropóloga brasileira, pesquisadora da Universidade de Brasília e da University of Brown.
Giselle Carino é cientista política argentina, diretora da International Planned Parenthood Federation/WHR.