Em seu primeiro pronunciamento internacional, na 40ª Sessão do Conselho de Direitos Humanos da ONU (Genebra/25-02), a ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves afirmou, sem pudor, que defenderá “o pleno exercício por todos do direito à vida desde a concepção e à segurança da pessoa”. Isto significa criminalizar o aborto em todas as situações, inclusive nos casos de gravidez por estupro, risco de morte para a gestante e anencefalia fetal. O fato em si não surpreende. A ministra apenas escancarou ao mundo, mesmo que com um discurso travestido de progressista, o desprezo do atual governo pelos acordos multilaterais, em alinhamento com a política trumpista. No marco do 8 de Março, Dia Internacional da Mulher, é impossível calar nossa crítica.
Em primeiro lugar, não é verdade que o texto da Constituição de 1988 acolha o princípio do direto à vida desde a concepção. Não! O marco legal brasileiro não acolhe o direito à vida desde a concepção. Houve na Assembleia Nacional Constituinte um debate ferrenho, mas o texto não passou, e o movimento de mulheres comemorou. Sucederam-se tentativas, por parte de parlamentares conservadores-religiosos, de emendar a Constituição para introduzir este conceito: nenhuma delas foi aprovada no Congresso! No processo de construção democrática comemoramos a edição de normas e a criação de serviços de referência para o atendimento integral e seguro aos casos de aborto legal, pelo SUS. Serviços hoje ameaçados pelo direcionamento retrógrado do governo.
Em 2008 houve mais uma tentativa de retrocesso, desta vez via Supremo Tribunal Federal (STF). O Ministério Público Federal, através do então Procurador Geral da República, o católico e antiabortista Cláudio Fonteles, apresentou uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIn 3510), questionando o artigo 5º da Lei 11.105 de 2005 (Lei de Biossegurança), que regulamenta as pesquisas científicas para uso de células-tronco em terapias, feitas com embriões humanos produzidos por fertilização in vitro. O voto do ministro relator, Carlos Ayres Brito, foi taxativo ao afirmar que a Constituição brasileira protege a pessoa nascida com vida, mas esta proteção não se estende à vida humana embrionária. Ou seja, a decisão do STF estabeleceu como padrão o entendimento de que não há correspondência automática entre a vida humana biológica e a pessoa humana e que, portanto, o embrião e o feto não podem ser classificados como sujeitos de direitos.
A ministra Damares também falta com a verdade ao afirmar que o Pacto de São José da Costa Rica, firmado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos e assinado pelo Brasil em 1992, acolhe incondicionalmente o conceito de direito à vida desde a concepção. A condicionalidade foi garantida pela expressão “em geral”, para preservar os países onde o aborto é legal. Esta interpretação foi sacramentada em 2011, quando esta mesma Corte julgou o caso Artavia Murillo, concluindo que o texto do Pacto reconhece que não há direito absoluto do embrião, porque isto teria efeitos negativos sobre o direito à vida, à saúde, à liberdade, à autonomia sexual e reprodutiva, e o direito à igualdade e não discriminação das mulheres.
A ministra Damares ignorou que o Estado brasileiro é signatário, desde os anos 1990, dos acordos globais que recomendam a prevenção de abortos inseguros, a revisão das leis punitivas e o pleno respeito pelos direito das mulheres aqui elencados, como é o caso dos programas de ação da Conferência Internacional de População e Desenvolvimento (Cairo, 1994), da 4ª Conferência Mundial de Mulheres (Pequim, 1995) e do Consenso de Montevidéu (Cepal, 2013). A ministra tampouco considerou tratados e convenções internacionais ratificados pelo Brasil, como a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher (Convenção de Belém do Pará; 1994); a Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura (1985); a Convenção Contra a
Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes (1984); a Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação Contra a Mulher (1979), e o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (1966). Nesta postura retrógrada a ministra ignora os dados que precisam ser olhados de frente. A cada ano, no Brasil, supera-se a marca de 600 mil casos de mulheres que recorrem ao aborto inseguro, e as pobres, negras e desassistidas são as que sofrem mais pesadamente as sequelas e o risco de morte. Desconsidera (ou parece achar justo?) o que se passa em países como a Nicarágua, onde tamanha é a perseguição que mulheres são presas até por aborto espontâneo. Não quer enxergar os dados dos países onde o aborto foi despenalizado. Portugal, por exemplo, legalizou o aborto em 2007, e desde 2012 não se tem registro de mulheres que vêm a óbito por causas relacionadas ao aborto.
Por outro lado a ministra disse, defendendo o cumprimento da Constituição, que não haverá tolerância ao “feminicídio e ao assédio sexual”. A combinação disto com a negação do direito ao aborto em todos os casos resulta na defesa de projetos de lei, hoje em pauta no Congresso, que pretendem tornar o estuprador pai, e parte da família (Bolsa Estupro); pretendem que filhas abusadas por seus pais tornem-se mães de seus irmãos! Que noção de família defende esta ministra? Dentro deste pensamento, a fria saída para quem não admite ter uma criança fruto de estupro é colocá-la para adoção.
Foi risível a forma como a ministra mencionou, em Genebra, “o compromisso inabalável do governo brasileiro com os mais altos padrões de Direitos Humanos, com a defesa da democracia e com o pleno funcionamento do estado de direito”. Não! O atual governo brasileiro não é defensor dos direitos humanos! Ela omitiu o nada risível desmonte das políticas sociais, o retrocesso nas políticas de igualdade das mulheres, de igualdade racial-étnica e a desconstrução vigente, no atual governo, dos princípios do respeito e reconhecimento das diversidades (gênero, raça e identidade) no ensino público. A restauração conservadora em curso vem acompanhada por notícias cotidianas e dados alarmantes sobre o aumento da violência contra as mulheres, contra a população negra e indígena, e contra a população LGBTTIQ+.
A ministra omitiu também as medidas provisórias, sugestões legislativas e decisões de enxugamento da máquina administrativa que trafegam na contramão dos direitos humanos. Como combater o feminicídio liberalizando a posse de armas? Qual o sentido de afirmar a defesa dos direitos humanos se militantes estão sendo assassinados/as, obrigados/as a sair do país por tanta ameaça que recebem sem que o Estado se mova, e se os órgão de defesa estão à mingua?
São mentiras e omissões que não enganam a comunidade voltada para os Direitos Humanos!
8 de março de 2019
Assinam:
AFM – Articulação Feminista Marcosul
AMB – Articulação de Mulheres Brasileiras
Anis – Instituto de Bioética
CAMTRA – Cada da Mulher Trabalhadora
CDD – Católicas pelo Direito de Decidir
Cepia Cidadania, Estudo, Pesquisa, Informação e Ação
Cfemea – Centro Feministas de Estudos e Assessoria
CFSS – Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde
CLADEM – Comitê Latino-americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher
Clínica de Direitos Humanos da UFMG
Coletivo 4D – Quatro Décadas de Feminismo
Conectas Direitos Humanos
Consórcio da Lei Maria da Penha
Criola
CUT – Central Única dos Trabalhadores
Gestos – Soropositividade, Comunicação e Gênero
Grupo Curumim – Gestação e Parto
Laboratório de Direitos Humanos da UFRJ
Manifesta Mulheres
Movimento de Mulheres de Cabo Frio
PartidA
Portal Catarinas
Rede Acreana de Mulheres e Homens
Redeh – Rede de Desenvolvimento Humano
RFS – Rede Nacional Feminista de Saúde, Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos
Setorial Nacional de Mulheres do PSOL
SOS Corpo – Instituto Feminista para a Democracia
Tamo Juntas!
Themis – Gênero Justiça Direitos Humanos