Movimento feminista impõe uma nova energia democratizante
(El País, 08/03/2019 – acesse no site de origem)
Hoje, Dia Internacional da Mulher, celebra-se o primeiro aniversário do início de uma série sustentada de manifestações que foram reunindo centenas de milhares de mulheres nas ruas de todo o mundo. Em 8 de março de 2018, a Espanha, fiel a uma arraigada tradição feminista que remonta pelo menos aos tempos da II República (1931-39), respondeu com sensibilidade e urgência, situando-se na vanguarda da luta pelo avanço dos direitos e oportunidades das mulheres com uma mobilização sem precedentes. Desde então, observa-se a solidez argumentativa e a inteligência organizacional de um movimento, o feminista, capaz de manter ao longo do tempo reivindicações que, impulsionadas viralmente e desenvolvidas em um plano majoritariamente horizontal, demonstraram não ser flor de um só dia, consolidando-se em vez disso como um dos eixos políticos do presente e do futuro do país.
A eclosão reivindicativa dos últimos meses permeia outros debates essenciais, como o da precarização da vida, fenômeno que afeta amplas maiorias sociais em praticamente todos os países do planeta, mas que apresenta situações agravadas para o bem-estar e as necessidades das mulheres. Os cortes no âmbito da seguridade social atrapalham seriamente o caminho rumo à plena participação, articulando de novo velhas formas de subordinação e discriminação que colocam as mulheres em clara situação de desvantagem estrutural com relação a seus pares masculinos, em todos os níveis da vida. Supõe, além disso, um risco agregado: que continue havendo uma confusão entre igualdade e meritocracia, e que os cenários de ausência de discriminação sejam erroneamente confundidos com a mera eliminação de obstáculos na ascensão corporativa rumo a posições de poder e reconhecimento para as mulheres.
A agenda feminista se desenvolve globalmente, mas impõe por sua vez perguntas e respostas adaptadas a contextos específicos dos lugares onde a eclosão desta nova energia democratizante, especificamente feminina, ganhou uma visibilidade e reconhecimento públicos inusitados. Sob o impulso desta quarta onda do feminismo, questionam-se novamente as estruturas de poder, reivindicando uma concepção ampla e integradora do que implica realmente a violência exercida desde âmbitos estatais e sociais contra as mulheres, e pondo sobre a mesa medidas relativas à justiça ambiental e distributiva que exigem o pleno reconhecimento, de fato e de direito, de todas as formas de trabalho, visíveis e invisíveis, nas quais as mulheres estão envolvidas, aglutinadas hoje sob o conceito do cuidado.
De países tão diferentes como China, Índia, Argentina e Tunísia até outros mais próximos das nossas realidades sociais, as mulheres em toda a sua diversidade tiveram que enfrentar a redefinição do que significa a igualdade radical, e a fazê-lo além do mais num contexto onde as promessas quebradas da globalização produziram um recuo identitário de corte tradicionalista e nativista que ameaça causar uma perigosa involução.
A instrumentalização política do mal-estar social impulsionada pelos novos homens fortes na Polônia, Hungria, Brasil e Estados Unidos conduziu à presença de discursos carcomidos sobre valores familiares que mais uma vez retratam as mulheres como portadoras das essências nacionais, convertendo as rebeldes, ruidosas e descontentes no principal alvo da ira de sua reação. Entretanto, em um momento no qual a ascensão das forças radicais mostra sua pujança em todo o mundo, inclusive o nosso país, observamos também o taxativo sim das irlandesas à despenalização do aborto, algo que o Senado na Argentina só conseguiu atrasar. E também a potência transformadora de uma contundente resposta da opinião pública, decidida a demonstrar que o caminho empreendido para uma radical concepção igualitária do mundo já é irreversível.