Séculos antes de Marielle Franco, vereadora assassinada há um ano em pleno exercício do mandato, pioneiras destacaram-se em diversas áreas e inspiraram movimentos sociais e culturais
(O Globo, 14/03/2019 – acesse no site de origem)
Quem foram Dandara, Tia Ciata, Esperança Garcia, Luíza Mahin, Maria Felipa?
Há pouca documentação sobre essas e outras mulheres negras que protagonizaram a História do Brasil ao longo dos séculos. Suas trajetórias persistem apoiadas em registros orais, e muitas delas tiveram seus papéis atrelados às lutas masculinas. Mas esse cenário está em transformação.
Para historiadores, a morte da vereadora carioca Marielle Franco, que completa um ano hoje, e a projeção mundial de seu nome revelam como, nos últimos anos, “uma série de grupos e movimentos sociais silenciados historicamente ganharam mais força e visibilidade”, nas palavras de Ynaê Santos, professora do CPDOC da FGV.
Marielle, diz Santos, não será lembrada apenas pela “barbárie de seu assassinato”, mas por seu papel social:
— Uma mulher negra, nascida na favela e defensora dos Direitos Humanos, sobretudo das causas LGBT e das mulheres negras.
Contribuem para a crescente visibilidade desses grupos as redes sociais e a maior organização dos movimentos negro e feminista. O que também propõe uma revisita ao passado, com um olhar “plural e diverso”, como sugere a historiadora:
— Um olhar que permita conhecer personagens que foram fundamentais e que, por uma série de escolhas, inclusive políticas, não receberam a devida importância.
Nomes como Dandara e Tereza de Benguela, mulheres de origem africana que foram escravizadas, explica Santos, e se engajaram na luta pela liberdade, fazendo parte de dois quilombos do período colonial, nos séculos XVII e XVIII, respectivamente. No século XIX, a historiadora destaca Maria Firmina dos Reis, autora do primeiro romance abolicionista da América Latina, “Úrsula” (1859).
— A invisibilidade da negra é fruto do racismo e do machismo que estruturam a sociedade brasileira e fazem com que essa mulher ocupe o lugar de subalternidade, exploração, mesmo compondo a maior parte da população. São várias camadas de violência, inclusive simbólica, que fazem parecer que a história dessas mulheres não importa, pois elas apenas comporiam a massa de anônimos — conclui Santos.
Construção dos sonhos
A jornalista e colunista do GLOBO Flávia Oliveira conta que, quando estava na escola, nos anos 1970, e na universidade, na década seguinte, não aprendeu sobre mulheres negras como referência ou percebeu destaque à pele negra de protagonistas da História. Essa ausência, diz, ainda ecoa na questão atual da representatividade e se reflete na construção de sonhos e na mobilidade social.
— É como se determinados papéis, como postos de poder e posições de relevância, estivessem reservados aos brancos, sobretudo homens brancos. De modo geral, negros são apresentados nos territórios das carências, em posições subalternas. O reconhecimento do protagonismo das mulheres negras na luta por direitos e na construção de saberes e tradições no Brasil nos fez muita falta, e isso está sendo corrigido agora, com o resgate dessas personagens históricas e com a construção de biografias relevantes, como a da sambista Dona Ivone Lara, a da líder religiosa Mãe Stella de Oxóssi, a da escritora Conceição Evaristo.
Além de contar as histórias dessas mulheres, é importante pensar em como apresentá-las, indo além de suas relações com um homem, como mãe ou companheira, e ressaltando suas produções intelectuais, inteligência e estratégia, destaca a historiadora Giovana Xavier:
— Dandara é uma figura narrada como mulher de Zumbi. Mas devemos pensá-la para além disso. Há várias referências do protagonismo das mulheres nas funções do quilombo, como na costura dos utensílios, vigilância das fronteiras. Por que a apresentamos como esposa, e não como quem ela foi, independentemente de Zumbi? — questiona a professora da UFRJ.
Registro oral
Uma das dificuldades para que se faça justiça a essas personagens é a carência de registros de suas existências. A cientista política Débora Thomé, autora do livro “50 brasileiras incríveis para conhecer antes de crescer”, aponta que a história das mulheres negras é, em vários momentos, registrada apenas pela tradição oral, “que se mantém de outra forma, mas é mais difícil e, às vezes, menos aceita”. A falta de documentação pode fazer com que haja “perda de nomes que nem sequer chegam até nós”.
A historiadora Patricia Macêdo, arquivista e docente da UniRio, concorda. Para ela, a literatura oficial dos séculos XVII a XIX dificulta a identificação da atuação de mulheres no período. Se as brancas eram pouco faladas, as negras, menos ainda:
— A documentação procurava escondê-las. Quando havia a presença delas, o movimento perdia força política. E eram retratadas como ‘emotivas’.
Protagonistas de seu tempo
Esperança Garcia
A escrava piauiense escreveu, em 1770, uma das mais antigas cartas de denúncia de maus-tratos contra negros, entregue ao governador da então província de São José do Piauí. Em 2017, recebeu o título de primeira mulher advogada do Piauí pela OAB do estado.
Tia Ciata
Hilária Batista de Almeida nasceu em 1854, em Santo Amaro, Bahia. É considerada uma das figuras mais influentes da origem do samba. No início do século XX, a mãe de santo promovia rituais religiosos e famosas rodas de partido-alto na Praça Onze.
Carolina Maria de Jesus
Nascida em 1914, em Sacramento, Minas Gerais, foi uma importante escritora brasileira. Em seus cadernos, descrevia sua vida na favela e seu dia a dia em São Paulo. Um deles deu origem ao seu mais famoso, “Quarto de despejo”, publicado em 1960.
Colaborou Helena Borges