Anote: quase nunca a culpa é da mãe
(Emais, 15/03/2019 – acesse no site de origem)
Não tem um dia que nós, mães, não nos sintamos culpadas por algo em relação aos nossos filhos. E esse sentimento chega cedo, quando não conseguimos ‘desacelerar’ durante a gravidez, encontramos dificuldade em amamentá-los, decidimos colocá-los na creche para voltar ao trabalho, deixamos que comam porcarias porque não sobrou tempo para cozinhar nada saudável, ficamos presas no trânsito e não conseguimos buscá-los na escola no horário ou sermos tão presentes o quanto gostaríamos. A lista é extensa. Mas sentir culpa, algo que parece inerente à maternidade, não significa que realmente tenhamos culpa quando algo sai do script que traçamos inconscientemente para a vida dos nossos filhos – e talvez poucas de nós saibamos disso.
‘A senhora se sente culpada de alguma forma?’, pergunta o repórter à mãe de um dos atiradores da escola de Suzano, uma mulher visivelmente humilde e em estado de choque, quem não estaria? O filho dela matou e morreu, oras. Ela se defende da investida como pode, mais com seu instinto de sobrevivência do que com raiva. Diz que não, não se sente culpada. Não, também não entende porque ele fez o que fez, “estou querendo saber também” diz, escondendo-se de uma câmera que achou boa ideia registrar a imagem da dor que nunca mais conseguirá esquecer, a reação física gerada pelo o que de pior pode acontecer a uma mãe, a perda do seu filho.
Nos debates sobre o assunto que surgiram nas redes sociais uma amiga lembrou de “Precisamos falar sobre o Kevin”, livro da norte-americana Lionel Shriver, lançado pela editora Intrínseca e que virou filme com a ótima Tilda Swinton como protagonista. (Se não leu o livro ou assistiu ao filme e não quiser spoilers, pare de ler por aqui.)
A obra conta a história de Eva, mãe de Kevin, um menino de 16 anos que matou dezenas de colegas, uma professora e um servente em uma chacina ficcional semelhante a tantas provocadas por jovens em escolas dos Estados Unidos e, agora, infelizmente, também pelos jovens brasileiros. Enquanto Kevin cumpre a pena ao qual foi condenado, sua mãe vive o martírio dos julgamentos sociais em liberdade, a prisão reservada às mães dos assassinos não tem grades visíveis.
No livro, Eva se corresponde com o marido ausente, talvez a única pessoa que possa entender sua tragédia diária. Nas cartas lembra que Kevin era um menino entediado e cruel, cujo prazer passava por aterrorizar babás e vizinhos. Ela se culpa porque não queria filhos quando engravidou, lembra que os primeiros tempos com ele foram difíceis e de pouca conexão (mais culpa) e porque anos depois gestou uma menina graciosa que fez com que a maternidade fosse doce e mais fácil do que foi com Kevin. Uma história que poderia ser nossa e que muitas vezes se parece com a nossa, mães verdadeiramente imperfeitas que somos, ainda bem.
Eva tem culpa? Tenho certeza que não. Ao ler o livro, tive a certeza que Kevin da ficção era um psicopata, assim como 1% da população do mundo. Tenho convicção que a maioria deles tem mães amantíssimas, famílias estruturadas.
Então a culpa é do videogame/do bullying/do abandono parental/do ódio corrente/do culto às armas? Não sei a história desses meninos de Suzano, parece que há um pouco de tudo nesse caldeirão de fúria que os levou à decisão de executar um ato tão brutal. Mas existe um ditado africano que diz que “é necessária uma aldeia inteira para se educar uma criança”. E isso é o que há de mais verdadeiro que se possa dizer sobre a criação de filhos. Uma mulher sozinha, sem parceiro, sem família, sem direitos, sem salário digno, sem acesso a creche, escola ou hospitais de qualidade para os filhos e sem ajuda alguma, muitas vezes não é capaz de dar conta dessa empreitada. Então, quando muitas crianças não se tornam o que a sociedade esperava delas, a culpa não é da mãe.