Luana Barbosa foi morta depois de ter sido espancada por PMs em Ribeirão Preto (SP)
(Brasil de Fato, 13/04/2019 – acesse no site de origem)
Após três anos do assassinato de Luana Barbosa, o caso ainda corre judicialmente sem a efetiva responsabilização dos agressores. Negra, lésbica, mãe e periférica, Luana foi morta aos 34 anos por lesões cerebrais provocadas por três policiais militares que a espancaram na esquina de sua casa, no bairro Jardim Paiva II, zona Norte de Ribeirão Preto (SP). As agressões ocorreram após Luana recusar ser revistada pelos soldados do 51º Batalhão da PM, exigindo uma presença policial feminina. Ela foi encaminhada a Unidade de Emergência do Hospital das Clínicas (HC-UE), mas morreu cinco dias depois da violência.
O laudo do Instituto Médico Legal (IML) anexado ao inquérito à época confirma a morte por isquemia cerebral em decorrência de espancamento. Luana havia saído com a moto para levar o filho Luan para um curso de informática no dia do crime. O adolescente de 14 anos presenciou a brutalidade da ação, após serem enquadrados pelos policiais na esquina da casa da família. Os PMs estão respondendo em liberdade por homicídio triplamente qualificado: quando o crime é considerado cruel, por motivo torpe, e sem possibilidade de defesa da vítima.
A última audiência de instrução e julgamento que ocorreu, no último dia 26 de março, no Fórum de Justiça de Ribeirão Preto (SP), foi marcada pela ausência das testemunhas que iriam depor em favor de Luana, mesmo que em anonimato. Foi a sexta audiência desde o fim do inquérito policial em abril de 2018, que acusou formalmente Douglas Luiz de Paula, André Donizete Camilo e Fábio Donizeti Pultz por lesão corporal seguida de morte.
Daniel Rondi, um dos advogados da família de Luana, explica que o trabalho se concentra agora em encontrar testemunhas protegidas pela justiça, que desapareceram sem deixar endereço. Ele explica que uma das estratégias dos policiais vem sendo culpar a própria Luana pela morte, em uma tentativa de evitar a tipificação do crime como homicídio qualificado – o que pouparia os policiais do júri popular. “A tese de vitimologia infelizmente é muito usada neste tipo de crime, pois tenta imputar ‘condutas’ desonrosas ou passagens criminais da vítima para deixar homicidas impunes”, revela.
Outra estratégia da defesa dos PMs se apoia no fato de dela ter tido passagens anteriores em unidades prisionais. A última passagem de Luana pelo cárcere havia ocorrido em 2009, na Penitenciária Feminina da Capital, sete anos antes de sua morte, com as acusações de roubo e porte de armas. Durante o período reclusa, Luana participou de atividades laborais e culturais, entre elas, a participação no concurso cultural O Direito do Olhar – em que Luana desenvolveu a arte do desenho e foi premiada com a terceira colocação – e a experiência com a Cia Coexistir de Teatro.
Quando saiu da prisão, Luana passou a trabalhar como terceirizada em uma empresa de buffet. Foi com o dinheiro do último serviço que conseguiu comprar a moto, o motivo pelo qual foi parada pelos policias no dia de sua morte. Para ela, que não reproduzia esteriótipos de feminilidade, as saídas com a moto gerou suscetivas abordagens policiais. No dia de sua morte, Luana já havia sido enquadrada quatro vezes.
A defesa de Luana sustenta que a tipificação do caso seja a de homicídio qualificado, o que levaria os PMs a júri popular. A sentença é dada pela juíza Martha Rodrigues Moreira, quem acompanha o caso. Para advogada da família de Luana, Dina Alves, existem provas suficientes no processo pra condenar os agressores. “É inegável que ela foi morta violentamente como consta no laudo do IML, essa é nossa materialidade”.Sobre a autoria, Dina afirma que “O próprio conteúdo fático probatório formado nos autos através dos depoimentos das testemunhas não deixam a menor dúvida da agressão por parte dos policiais”.
Em 2016, ano do assassinato de Luana, o Brasil alcançou a marca histórica de 62.517 homicídios, segundo Sistema de Informações sobre Mortalidade do Ministério da Saúde. O número equivale a uma taxa de 30,3 mortes para cada 100 mil habitantes, a maior de todo o período de 2006 a 2016. Do total de óbitos, 4.645 eram mulheres, sendo 507 somente no estado de São Paulo – a maior taxa entre os 26 estados da federação. Nos últimos dez anos, 553 mil pessoas morreram vítimas da violência intencional no país. Os dados são do Atlas da Violência de 2018, produzido pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA).
Segundo dados do Fórum Brasil de Segurança Pública, em 2017, as polícias brasileiras foram responsáveis por 5.144 mortes no país, uma média de 14 por dia. O número corresponde a um aumento de 20% com relação a 2016. Neste mesmo período foram 367 policiais mortos, 5% a menos do que no ano anterior.
A novela judicial
O caso de Luana é marcado pelo impasse judicial entre as esferas civil e militar, cada uma com interpretações distintas sobre o assassinato. Em maio de 2016, um mês após o crime, a investigação da morte de Luana foi encaminhada à Justiça Militar do Estado de São Paulo (JMSP) e o caso foi arquivado pela ausência de indícios de crime militar. Porém, a pedido do Ministério Público e por decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP), o processo foi reaberto na Justiça Comum .
Só no início de 2018, o inquérito policial foi finalizado pela Polícia Civil, tipificando o crime como lesão corporal seguida de morte e não como um crime hediondo. Os três policiais militares indiciados no caso chegaram a ter um mandato de prisão solicitado pelo Ministério Público, que foi negado pelo juiz José Roberto Bernardi Liberal. Atualmente os policiais respondem em liberdade: André Donizetti Camilo e Fábio Donizeti Pultze realizam atividades administrativas dentro da corporação e Douglas Luiz de Paula se aposentou.
A advogada considera que apesar das dificuldades enfrentadas durante esses três anos no processo, o caso avançou comparado a maior parte das mortes em decorrência de intervenção policial em que não há andamento, nem conclusão das investigações. “É comum o inquérito ser arquivado por falta de provas e nós já estamos na sexta audiência, ouvimos testemunhas e relatos, que inclusive desconstrói algumas narrativas criminalizadoras contra Luana construída pela defesa dos policiais, como por exemplo, que ela era depende de drogas ou lutadora de artes marciais”, completa.
O caso ganhou visibilidade quando a irmã de Luana, Roseli Barbosa dos Reis, fez um pronunciamento na Seção Ordinária de 19 de abril de 2016 da Câmara Municipal de Ribeirão Preto. Em maio de 2016, a morte de Luana também foi reconhecida internacionalmente quando a ONU Mulheres e o Alto Comissariado da ONU para os Direitos Humanos (ACNUDH) publicou uma nota enfatizando a importância de uma investigação imparcial do caso. O texto publicado no site da ONU afirma que “a morte de Luana é um caso emblemático da prevalência e gravidade da violência racista, de gênero e lesbofóbica no Brasil.
Além disso, outras instituições também ajudaram a tornar o caso público, como a Comissão do Negro e Assuntos Antidiscriminatórios da OAB, a Ouvidoria da Polícia Militar do Estado de São Paulo e o Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana de São Paulo (CONDEPE), que conclui pela existência de abuso institucional e lesbofobia durante a abordagem.
Os movimentos populares também tiveram uma participação efetiva para a continuidade das investigações, com maciça participação de coletivos, entre eles o Coletiva Luana Barbosa. Fernanda Gomes, que faz parte do Coletiva, disserta em seu TCC no curso de Serviço Social da Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP) sobre o pouco acesso às políticas públicas afirmativas por parte das mulheres negras, lésbicas e periféricas, como é o caso de Luana.
Ela esclarece que ao invés de promover a igualdade, o Estado naturaliza práticas violentas de controle social. Apresentado no estudo de Fernanda, o dossiê sobre o lesbocídio no Brasil, revela que em 2016, o Estado de São Paulo foi responsável pelo maior número de mortes de lésbicas, representando 20% do total nacional.
Racismo geracional
A população negra é a que mais morre por ação policial no Brasil. Entre 2015 e 2016, 76,2% das vítimas de atuação das forças policiais eram negras. O levantamento foi exposto no Anuário Brasileiro de Segurança Pública, após uma análise de 5.896 boletins de ocorrência das mortes provenientes de intervenções policiais no período. A desigualdade racial no país, que expõe a alta concentração de óbitos da população negra, acompanha a história da família Barbosa em Ribeirão Preto (SP).
Vinda de Goiânia, Eurípides Barbosa dos Reis, suas quatros filhas e o filho Nathan, chegaram ao interior paulista logo após a morte do pai de Luana, assassinado no ano de 1981, em São Paulo, vítima de três tiros de arma de fogo. Luana, com ajuda de Roseli, foi quem localizou o corpo do pai desconhecido trinta anos após o crime. Ele foi enterrado como indigente na vala comum do cemitério Dom Bosco, em Perus, zona norte da capital paulista – o mesmo das covas clandestinas da ditadura militar descobertas em 1990.
A família se instalou no bairro Ipiranga, na zona oeste de Ribeirão, que convivia com muitos problemas relacionados à criminalidade, violência e abandono por parte do poder público nos anos 1990. Eurípides, por necessidade, afastava-se da criação doméstica. Ela sustentava os cinco filhos trabalhando dia e noite como diarista para famílias ricas da cidade, convivendo com muitos casos de racismo dentro das casas das “patroas brancas”. Em uma situação emblemática, Eurípides lembra de uma patroa que separava seus talheres e a mandava comer no canil dos cachorros. “Ela falou pra mim assim – tem um banquinho lá e a senhora senta lá pra almoçar. Eu cheguei lá era um canil, com um monte de mosca, cheirando xixi e cocô. Aí meu estômago não aguentou, eu voltei para casa chorando”.
A mãe conta que Luana sofria do mesmo preconceito anos mais tarde. Por duas vezes ela levou currículo numa rede de supermercados de Ribeirão. “Uma vez chamaram ela pra começar a trabalhar, chegando lá a recepcionista perguntou, mas é você que é a Luana? E saiu e disse espera um momentinho. Voltou dizendo que a vaga já havia sido preenchida. Era o jeito que ela estava vestida e a cor. Nós ficamos muito magoadas com isso”.
Luana era a mais nova entre as quatro irmãs. Sem a presença materna, as irmãs se cuidavam entre si e também do irmão Nathan, que por ter nascido com deficiência cerebral exigia – e ainda exige – atenção especial das mulheres da casa. Roseli relata que só há pouco tempo o irmão deixou de ter as crises epiléticas. Na infância essa era outra dificuldade: os remédios eram caros e não eram oferecidos na rede pública. “Essa ainda infelizmente é uma realidade brasileira: de crianças sendo criadas por crianças. os irmãos mais velhos cuidando dos menores”, revela Roseli. A pouca renda da família vinha do trabalho da mãe, e de uma pensão que Eurípedes recebia pela morte do marido – que na época representava um terço do salário mínimo.
Em janeiro de 2007 a família mudou para o Jardim Paiva II, onde Luana viria a ser assassinada brutalmente. O bairro é separada por quatro etapas de conjuntos habitacionais erguidos na região por meio do programa federal Minha Casa Minha Vida e da Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano do Estado de São Paulo (CDHU). “Eu esperei a vida toda pra conseguir isso aqui”, conta a mãe de Luana. O bairro é dividido em um processo de “guetização” revela Roseli, onde uma linha divisória imaginária nos arredores do campus da USP, conhecida como Cidade Universitária, faz a divisão entre ricos e pobres. Ela revela que a cidade é muito conservadora, elitista, – comandada pelos barões do agronegócio -, onde a periferia e a população negra permanecem escondidas. ” É uma cidade muito difícil para se encontrar enquanto jovem periférico, negro e para Luana que era lésbica, muito pior, pois ela exteriorizava. Aqui a seleção racial é implacável.”
Para a advogada da família as políticas do presidente Jair Bolsonaro (PSL) podem ser combustíveis para impulsionar a isenção de culpa de policiais ou redução de pena nesse caso. ” As palavras ditas por Luana como Direitos Humanos, no momento do espancamento, e relembrada pelas testemunhas, revela que a política defendida hoje no país é contra a punição e criminaliza mulheres negras, como Luana.”
Em nota enviada a reportagem do Brasil de Fato, a Secretaria de Segurança Pública do estado de São Paulo informou que aguarda o desfecho do processo criminal para tomar qualquer tipo de providência administrativa.