Na quarta-feira da semana passada, a advogada Luciana*, 45, foi agredida fisicamente pelo ex-marido, pai de seu filho, ao tentar proteger o menino. Alcoolizado, o agressor queria tomar banho com a criança, enquanto esta pedia à mãe que a protegesse.
(Universa, 25/04/2019 – acesse no site de origem)
Diante do comportamento do filho, Luciana disse ao ex-marido que era melhor não insistir. A reação foi violenta, inesperada. “Ele me deu um tapa no rosto, uma rasteira, depois me arrastou pelo braço. Eu pedi socorro, chamei a polícia e tudo o que consegui foi ter as visitas ao meu filho suspensas.”
O filho de Luciana era pouco mais que um bebê e já sofria comprovado abuso sexual do pai, quando ela descobriu que a lei 12.318, de combate à alienação parental, “não passa de um embuste”. Alienação parental é o processo de manipulação psicológica de uma criança para que ela passe a ter medo, rejeição ou desprezo pelo pai ou mãe.
Criada em 2010, supostamente para proteger a criança, a lei costuma ser usada pela defesa do abusador para mostrar que quem denuncia está praticando alienação parental. Seria uma tentativa da mãe de desqualificar o pai. Luciana diz que, se fosse hoje, “não faria a denúncia de jeito nenhum”. “Tentaria resolver de outro jeito. O resultado desse processo é que meu filho ficou muito mais exposto a um abusador.”
Hoje, 25 de abril, se promove o Dia Internacional de Combate à Alienação Parental.
Sindrome de Gardner
A lei 12.318 foi fundamentada na síndrome da alienação parental (SAP), conceito criado pelo psicólogo norte-americano Richard Gardner, que acreditava que a mãe (na maioria das vezes) fazia acusações de abuso sexual conta o pai, a fim de evitar o contato dele com o filho. Embora tenha dado origem ao termo “alienação parental”, a síndrome nunca foi completamente assimilada pela comunidade científica. Os pesquisadores alegavam que a base que a justificava — a experiência clínica do próprio Gardner — era insuficiente. Para eles, faltava validade estatística.
Além de escrever cerca de 250 livros, Gardner foi o autor de uma série de declarações polêmicas (“Há um pouco de pedofilia em todos nós”; “A pedofilia é uma prática amplamente difundida e aceita entre literalmente bilhões de pessoas”; “Pode ser que uma das razões de a filha ter se aproximado do pai seja a deterioração do relacionamento dela com a mãe”; “Em tais discussões, a criança precisa ser ajudada de forma a perceber que temos em nossa sociedade uma atitude exageradamente punitiva em relação aos encontros sexuais entre adultos e crianças”). Em 2013, Richard Gardner pôs fim a própria vida, esfaqueando-se no peito e no pescoço.
Único remanescente
“O Brasil é o único país que mantém essa lei. É estarrecedor. Ela já foi derrubada na Espanha, na França, no México, na Argentina; pela Suprema Corte dos Estados Unidos; e repudiada pela Organização Mundial de Mulheres”, diz Valéria Scarance, promotora de Justiça do Ministério Público de São Paulo (SP) e coordenadora nacional da Comissão Permanente de Combate à Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher (Copevid).
Valéria afirma que “a lei tira o foco do que é mais importante, que é proteger a criança e investigar o fato”. “Coloca em dúvida a palavra da criança e a da mãe, e desencoraja a denúncia do abuso. Graças a essa lei, muitas mães que fizeram a denuncia tiveram que enfrentar a inversão (perda para o pai) da guarda do filho (caso de Luciana). Há caso de mulheres que adoecem por causa do estresse emocional (Luciana se trata de um câncer), e até se matam.”
Quem defende
Defensores da lei alegam que afastar imediatamente o pai da criança, em caso de denúncia de abuso, é correr o risco de privá-lo desnecessariamente do convívio com o filho — se a denúncia for falsa. De acordo com o presidente da ONG Apase (Associação de Pais e Mães Separados), Analdino Rodrigues Paulino, “as mães não querem perder a guarda unilateral, daí esse amontoado de acusações contra pais que se separam”. “Um pai que se separa fica imediatamente a mercê de uma falsa acusação de abuso sexual. Isso é uma tremenda covardia com as crianças”, acha.
Em suas elaborações, Analdino parte do princípio que as falsas denúncias de abuso sexual tem motivação emocional ou econômica: “A mulher ainda gosta do pai do filho dela e deseja se vingar por ter sido deixada. Ou quer tirar vantagem financeira e usa a criança como mercadoria de troca.”
Para comprovar sua tese, Analdino apresenta uma matéria de jornal em que uma psicóloga do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro afirma que, nas 13 varas de família da capital, 80% das denúncias são falsas. “E a maioria das acusações é atribuída a mãe.”
Aí é que está…
A promotora Valéria Scarance informa que um dos maiores obstáculos na investigação de abuso sexual é justamente a falta de capacitação das equipes multidisciplinares que atuam nas varas de família, em especial os psicólogos e assistentes sociais: “Esses profissionais em geral não têm expertise em crimes sexuais e, por isso, não raro, tiram conclusões errôneas. Por sua vez, os juízes lidam com todos os tipos de casos, não só os sexuais. Muitos não sabem sequer que Richard Gardner era pedófilo. Eles se baseiam no que dizem os peritos, e esses, de novo, não tem conhecimento profundo da matéria.”
Valéria acrescenta outros complicadores na investigação de abuso:
- Em geral, o abusador é conhecido da família, alguém acima de qualquer suspeita, completamente inserido na sociedade. Para aliciar a criança, ele se mostra socialmente simpático, agradável, de tal forma que muitas mães se recusam a acreditar que o pai de seus filhos seria capaz de abusar deles;
- Na maior parte das vezes, pedófilos e abusadores não praticam relação sexual completa (com penetração), e por isso não deixam vestígios. Apenas 7% a 10% deles vão além de beijo, manipulação e sexo oral;
- A criança pode ser acometida pela chamada síndrome da adaptação da vítima do abuso sexual. Ela não sabe o que é estupro, então pode tomar aquilo como algo que faz parte da vida. Mas em algum momento ela fala a respeito.
- Quando fala, a pode não ser levada a sério pelo adulto que a ouve. Então, ela se torna vítima duas vezes.
Pela revisão da lei
No fim do ano passado, atendendo a demanda de mais de 5 mil mães, o Conanda (Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente) soltou uma nota pública sugerindo a revisão de trechos da lei 12.638 — como o artigo 2º, inciso VI (apresentar falsa denúncia contra genitor, contra familiares deste ou contra avós, para obstar ou dificultar a convivência deles com a criança ou adolescente); e o artigo 6º, inciso V a VII (determinar a alteração da guarda para guarda compartilhada ou sua inversão; determinar a fixação cautelar do domicílio da criança ou adolescente; declarar a suspensão da autoridade parental).
O Conanda é a instância máxima de formulação, deliberação e controle das políticas públicas para a infância e adolescência na esfera federal.
Ação contra o juiz
Indignada com a perda da guarda da filha (apesar das provas apresentadas em relação ao abuso sexual praticado pelo pai), Andrea*, do Coletivo Mães na Luta, entrou com uma ação contra o próprio juiz do caso, Pedro Pildewasser, no Conselho Nacional de Justiça (CNJ).
Ela alega que o pai da menina contratou um advogado conhecido por não perder as ações que patrocina “quando distribuídas ao magistrado requerido”. Segundo Andrea, ele tem “adotado estrategia judicial, de forma a se beneficiar, equivocadamente, das disposição da lei da alienação parental”. Ao blog, ela diz: “O judiciário não pode continuar sendo conivente com o abuso sexual.”
Andrea afirma ainda que, por causa das inúmeras denúncias que fez contra Pildewasser, ele a teria impedido de digitalizar os autos — o que denotaria parcialidade para atuar no caso. Ela revela ainda que o juiz é sócio de um escritório de advocacia, o que evidencia “possível irregularidade”.
O ministro Humberto Martins, corregedor nacional de justiça, oficiou a corregedoria geral do Rio para que apure os fatos e informe as conclusões em um prazo de 30 dias