“Eu sempre era tratada como a estagiária da juíza. Uma vez recebi a mãe de um preso, e ela me disse, você é que vai me atender? Quando chega em uma comarca do interior, é comum você não ser cumprimentada”. Os relatos são da promotora de justiça do Ministério Público da Bahia Lívia Maria Santana e Sant Ana Vaz. Com 15 anos de experiência no MP estadual e, atualmente à frente de um promotoria de combate ao racismo, além de coordenar o Grupo de Trabalho de Enfrentamento ao Racismo da Comissão de Defesa dos Direitos Fundamentais do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), esta baiana foi um dos destaques da Conferência de Promotoras e Procuradoras de Justiça que acontece até este sábado, 27 de abril, em Goiânia-GO. Uma das participantes do evento, Lívia Santana aproveitou a oportunidade para fazer o que tem se dedicado há anos: chamar atenção das pessoas para a necessidade de se refletir sobre a questão racial combinada com a equidade de gênero – tema central da conferência.
(CNMP, 27/04/2019 – acesse no site de origem)
Logo no início do painel reservado a depoimentos sobre as edições anteriores da conferência, Lívia Santana faz uma espécie de provocação ao dizer que a temática racial combinada com a questão de gênero ainda não está presente na instituição. ”Quando a gente fala de desigualdade de gênero, isso vem sendo bastante discutido nos ministérios públicos”, afirmou destacando o fato de na maioria dos estados existirem grupos específicos para atender mulheres e em situação de violência. No entanto, segundo ela, a instituição acaba esquecendo de fazer uma intersecção do toma com com a questão racial e, com isso, por omissão se permite que a opressão racial continue se reproduzindo. “A gente se alia a uma opressão quando a gente tem esta cegueira racial”.
Lívia Santana faz questão de frisar que, embora os negros representem 54% da população brasileira, eles não estão representados em nenhum espaço de poder. No caso do Ministério Público, ela lembra que a pesquisa “Cenários de Gênero”, realizada em 2018 pelo CNMP, levantou dados sobre a presença de promotoras e procuradoras na instituição. Ela lembra que os dados revelaram que as mulheres têm acesso à instituição, mas que poucas chegam aos postos de comando. No entanto, a pesquisa não considerou o recorte racial e, para a promotora, mesmo sem dados concretos, é possível afirmar com segurança que a negras sequer entram para o Ministério Público. “Eu pergunto, onde está a mulher negra nessa história? Se não considerarmos a opressão de forma sobreposta (a condição feminina e racial) não evoluiremos nesta questão”, resume.
Falando em perspectivas, a promotora afirma que tem atuado – inclusive aproveitando espaços de discussão como as conferências regionais – , para chamar atenção para o tema. Em sua avaliação, a primeira providência deve ser no sentido de conhecer a realidade, levantar e cruzar os dados disponíveis para, em seguida, buscar alternativas e caminhos que possam revertam o quadro. “Precisamos pensar que nossa missão constitucional nunca estará completa se não combatermos essas opressões sobrepostas em nossa instituição. Que serviço a gente presta pra fora se para dentro a gente não consegue pautar ou sequer refletir sobre essas questões?”, questiona.
Ainda sobre a importância de se trazer para o debate a questão racial feminina, a promotora relata uma mudança na reação das pessoas a partir do conhecimento de que ela atua nesta temática. “Hoje, quando vou atender alguém, que já me conhece porque estou há bastante tempo em Salvador, dizem, que bom que é você. Que bom que vou ser atendida por uma mulher negra”. Antes a reação era de estranhamento, de achar que aquele não era o seu lugar”, pontua, completando que estas reações ocorriam, por uma questão cultural, inclusive entre outras pessoas negras.
O aspecto cultural também é mencionado pela promotora em constatações como a de que, assim como em outros setores da sociedade, mulheres negras que entram para o Ministério Público costumam passar por processos como a alisamento dos cabelos, como forma de buscar aceitação interna. E para concluir cita uma afirmação da psicóloga e autora portuguesa, Grada Kilomba, que traduz bem a realidade da mulher negra e a opressão que é vivenciada. “A mulher negra diz que é mulher negra. A mulher branca diz que é mulher e o homem branco diz que é uma pessoa”, conclui.