Pesquisadora Jacqueline Teixeira diz que projetos na Igreja Universal estimulam empreendedorismo feminino e “domesticação” dos homens. “Damares é muito forte dentro do Governo. Ela pode até cair, mas teria que sangrar muito antes”
(El País, 14/05/2019 – acesse no site de origem)
Enquanto realizava o mestrado, e, em seguida, o doutorado, a antropóloga Jacqueline Moraes Teixeira, doutora em antropologia social e pesquisadora do Núcleo de Antropologia Urbana da USP, mergulhou em alguns projetos voltados para as questões de gênero e direitos reprodutivos dentro da Igreja Universal do Reino de Deus. Uma das maiores organizações religiosas do país, a Universal é o mais representativo grupo neopentecostal brasileiro, com mais de 6.000 templos e 1,8 milhão de fiéis por todo o Brasil segundo o Censo de 2010 do IBGE.
O interesse pela Universal foi despertado na pesquisadora e professora da Faculdade de Educação da USP quando ela encontrou uma série de textos publicados pelo bispo Edir Macedo, fundador da igreja, em defesa da descriminalização do aborto. A partir dali, Jacqueline mergulhou em alguns projetos de gênero, principalmente em defesa das mulheres, desenvolvidos pelo instituição religiosa, presente hoje em vários países. Nesta entrevista, a pesquisadora fala sobre como as questões como violência de gênero, aborto e divórcio são abordadas entre homens e mulheres na Universal e como os evangélicos se veem representados pelo Governo Bolsonaro.
Pergunta. Em sua pesquisa, você viu mulheres que lideram projetos ou participam de alguma forma deles dentro da Igreja Universal. Elas se dizem feministas?
Resposta. Meninas mais jovens têm a necessidade de se denominar feministas mesmo dentro da Universal, mas a questão é como isso vai sendo reconhecido pela liderança. Você pode até ser uma feminista, mas dificilmente vai conseguir se casar com um pastor. Por outro lado, esses projetos estão lidando com o empoderamento das mulheres. Na Universal, as mulheres mesmo não sendo reconhecidas como pastoras ou bispas, movimentam todos os projetos de gênero, que são os projetos mais importantes nesse processo de internacionalização, no processo de visibilidade, do que vai para a Record [canal do bispo Edir Macedo, líder da igreja] e o que não vai. Esses projetos relacionados a gênero foram praticamente todos fundados pela filha mais velha de Edir Macedo, Cristiane Cardoso, que apresenta um programa na TV Record junto ao marido dela que é bispo e hoje é o presidente da Record, Renato Cardoso.
P. E nesses grupos de mulheres há diferença social entre elas? De que forma se dá esse empoderamento?
R. É interessante perceber que é muito comum às mulheres atribuir muitas vezes à igreja seu processo de empoderamento, da mulher que consegue estudar mais, arranja um emprego melhor, melhor que do companheiro, que tem formação maior que a dele, que estuda mais. Elas estudam determinados cursos dentro da igreja, aprendem a guardar dinheiro, é como se a iniciação civil ocorresse na igreja, e não necessariamente na escola. Na Universal, se você quiser ter uma posição institucional, não pode deixar de estudar. E como as mulheres estão nas religiões, são maioria, e, de fato, são as que mais estudam no país, para muitas dessas mulheres esse processo de empoderamento e autonomia está muito atrelado à igreja. Na Universal tem formação de esteticista. E qual foi o setor de serviço que mais cresceu nos últimos anos? Estética. De alguma maneira, foram as igrejas que abriram espaço para cursos e para que essa ideia do empreendedorismo se tornasse uma questão atrelada ao feminino.
P. A Universal também desenvolve projetos sobre violência doméstica?
R. Sim. Durante a minha pesquisa, um dos projetos que eu estudei foi o Raabe, que é o nome de uma prostituta do antigo testamento e é também o nome do grupo de atendimento de mulheres em situação de violência da Universal desde 2011. O foco é no atendimento jurídico e psicológico a quem não tem condições de pagar, além de cursos de cura emocional para mulheres vítimas de violência. A partir de 2013, o projeto começou crescer muito nos presídios femininos, e no ano seguinte ganhou um super reforço com uma madrinha nacional que é a Andressa Urach, vice-miss Bumbum que ficou doente [a apresentadora passou 25 dias na UTI em 2014 por uma infecção generalizada por causa do silicone que havia implantado na panturrilha] e se converteu à Igreja Universal. De alguma maneira, ela retoma essa ideia da mulher que sofreu violência, abusos e se torna a grande madrinha das presidiárias e vai para os presídios de todo o Brasil lançando a biografia dela [Morri para ver, editora Planeta]. E essa resposta não emerge necessariamente da necessidade de se proteger a mulher como um sujeito civil, mas fundamentalmente do reconhecimento de que a família heterossexual, que é o bem que se deve defender, não é saudável. E que você precisa então transformar essa heterossexualidade numa coisa saudável.
P. É muito mais uma questão de preservar a família tradicional heterossexual do que de empoderar a mulher.
R. Sim. E a mulher é fundamental nessa família. Você precisa encarar que essa mulher, que é o esteio da família brasileira, morre em situações de violência extrema e que, se a ideia é defender a família, você precisa proteger essa mulher, tirar ela do risco, aceitar o divórcio…. Ao mesmo tempo em que esses projetos foram acontecendo, emergiu no cenário político nacional a necessidade de se combater a chamada ideologia de gênero, fundamentalmente nas escolas. E um dado muito interessante é que nas Câmaras Municipais, praticamente no mesmo mês em que se aprovava a retirada de tudo relacionado a estudo de gênero e sexualidade de parâmetros curriculares, era aprovada também a obrigatoriedade do ensino da Lei Maria da Penha nas escolas.
P. Por que essa relação?
R. A Lei Maria da Penha vem sendo operada não como uma pauta feminista, mas como algo fundamental para assegurar a emergência dessa família heterossexual saudável. Nesse processo eu encontrei os projetos da [ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos] Damares Alves. A necessidade de se permitir o debate sobre gênero a partir da Lei Maria da Penha fez com que determinadas mulheres assumissem posições de poder principalmente nesse novo Governo e a Damares corresponde a essa ideia. Você traz para o religioso uma lei, um discurso jurídico e de alguma maneira coloca esse discurso jurídico como uma resposta religiosa à necessidade de se pensar uma família heterossexual saudável.
P. A questão da violência doméstica é tratada em grupos de homens também?
R. Sim. Não tão diretamente, mas, por exemplo, se você for acusado de violência doméstica, não pode ser pastor. No caso deles, o projeto se chama IntelliMen e o foco está em construir um homem domesticado, voltado para a família, que trabalhe, que estude.
P. Ou seja, construir um homem domesticado e uma mulher empoderada…
R. Sim. Construir uma mulher empoderada, mas voltada para a família. E ela tem que saber que, apesar de toda essa maravilhosidade que ela é, ela tem que dar conta desse homem limitado. E esse homem, consequentemente, tem que entender que ele precisa melhorar muito para dar conta dessa mulher.
P. Você acompanhou alguns grupos de mulheres no WhatsApp durante as eleições? Quais eram os assuntos? Elas apoiavam Bolsonaro?
R. Acompanhei grupos diferentes. Um deles foi o grupo de mulheres evangélicas contra Bolsonaro, formado por ativistas de grupos importantes como o EIG, das Evangélicas pela Igualdade de Gênero, as Evangélicas pela Legalização do Aborto e os Evangélicos pelo Estado de Direito. Nesses grupos, as pautas eram totalmente anti-Bolsonaro. Acompanhei também no WhatsApp os grupos de obreiras e um outro de jovens, ambos da Universal. Nesses dois grupos —e é importante dizer que é só um recorte, pois são feitos de pessoas de São Paulo capital— não havia uma defesa de Bolsonaro. Principalmente porque muitas meninas, muitas jovens eram da periferia da cidade e diziam que não votariam no nele. Os candidatos mais citados eram Marina Silva (Rede), o cabo Daciolo (Avante), como alguém que “não sabemos onde vai dar, mas de repente vale tentar”, e não do de jovens, mas no das obreiras, que são mais velhas, uma tentativa de apostar em Geraldo Alckmin (PSDB), por medo. Algumas mulheres falavam de Fernando Haddad (PT), então não votar no PT não era uma questão homogênea. O momento da mudança e da crise nesses grupos nem foi quando Edir Macedo afirmou apoio a Bolsonaro. Nesse momento eu ainda via várias pessoas dizendo que não conseguiam votar em Bolsonaro. O que fez diferença foi quando Haddad deu uma entrevista à TV Aparecida [já no segundo turno] falou mal da Igreja Universal e de Bolsonaro [o candidato petista afirmou que o bispo Edir Macedo havia declarado apoio a Bolsonaro por “fome de dinheiro” e o chamou de “charlatão fundamentalista”. As declarações de Haddad causaram a indignação de dezenas de bispos nas vésperas do segundo turno e rendeu um processo na justiça contra ele]. Isso acendeu uma crise nos grupos. As pessoas diziam que se elas não votassem em Bolsonaro, elas estariam negando a própria identidade religiosa, afirmando que Haddad iria perseguir a Universal.
P. Na sua opinião, os evangélicos, e as evangélicas, se sentem representados no atual Governo?
R. Sim. Por um lado, o Governo Bolsonaro tem um discurso que recupera e renomeia uma série de questões que o movimento feminista sempre negou, e que de alguma maneira acende uma espécie de ódio às mulheres. Mas, por outro, a representatividade dessas igrejas depende das mulheres dentro do Governo, porque é a esposa do presidente, Michelle Bolsonaro, que é evangélica e leva para o Planalto o trabalho ligado aos surdos e as libras. Os católicos cuidaram das instituições de cegos, para pessoas cadeirantes, mas quem desenvolveu trabalhos com pessoas surdas e foram fundamentais para reconhecimento da libras como língua foram os evangélicos. Para mim, quando Michelle faz aquele discurso na posse, por meio das libras, é naquele momento que vem a performance de uma aliança, porque ela não só está garantindo uma representatividade como mulher evangélica, como garantindo uma representatividade de um discurso que passa como legítimo para os Direitos Humanos, que seria a acessibilidade por libras. É ela e Damares que representam essa aliança. E é por isso que eu acho a Damares muito forte dentro do Governo. Ela pode até cair, mas teria que sangrar muito antes, porque ela é um ponto dessa aliança [do bolsonarismo com os evangélicos].
P. Quando começou a te chamar atenção as defesas feitas pela Igreja Universal pela descriminalização do aborto? Quais os argumentos?
R. Os primeiros textos que eu mapeei de Edir Macedo sobre aborto foi em 2007.Não é necessariamente um princípio ético de defender o direito de a mulher de decidir. Existe uma questão teológica, da defesa de uma fé racional, em que o sujeito tem que estar no controle da sua vida. E aí entra o controle da natalidade, do casamento, das finanças. A defesa da descriminalização do aborto neste caso está ligada a um discurso econômico, de controle de natalidade. É daí que vem a discussão dos direitos reprodutivos, e entra o aborto, a pílula e vasectomia.
P. Dentro dessa defesa da vasectomia, uma série de reportagens da TVI, um canal português, apontaram, no final de 2017, que a Universal manteve uma rede ilegal de adoções em Portugal… De acordo com a reportagem, Edir Macedo recomendava a vasectomia e depois, a adoção.
R. Um dos capítulos da minha tese é sobre isso. Vi em muitas palestras a defesa da adoção: se a pessoa quer ter filho, seria mais factível adotar uma criança que já existe do que colocar outra no mundo. Isso é super performático, pois o próprio Edir Macedo tem um filho adotivo, e a geração de netos toda é adotada. E é dessa geração de netos adotivos que veio essa controvérsia toda narrada pela TV portuguesa. Na década de 90, e isso aparecia em vários relatos até de bispos e dos próprios genros do Edir Macedo, neste processo de internacionalização da igreja, tornou-se super importante pensar em um casal que não tivesse filhos, que pastores e bispos não deveriam ter filhos. Pela voz dele, isso seria tido como um sacrifício. Um processo que ajuda a igreja a ter menos gastos com a família eclesiástica, que é aquela que sai do país para erguer outros templos. Mas eu acho que essa justificativa econômica não dá conta da questão. Junto a isso, penso que a ideia é construir na vida desses bispos e mulheres uma teologia muito realizadora: eleger um sonho, que pode ser a paternidade, e optar por uma causa maior, ou coletiva, que seria a adoção.
P. E quando essa questão do aborto dá um giro?
R. Desde 2016 eu não vi mais a publicação de textos em defesa do aborto nem na Folha Universal e nem nos blogs do Edir Macedo. E no ano passado tivemos uma discussão super importante sobre a PEC 29 (que voltou à pauta no Senado). Em outros momentos, era uma pauta muito importante para a Universal marcar posição favorável ao aborto principalmente para produzir uma oposição clara à defesa que o catolicismo faz [da criminalização]. Então fui percebendo que começou-se a construir um discurso conservador. Primeiro para produzir uma aliança capaz de garantir a eleição de Marcelo Crivella no Rio de Janeiro, que é o Estado mais evangélico do Brasil e, consequentemente, é o Estado onde tem mais frequentadores da Assembleia de Deus. E a Igreja Universal é uma denominação historicamente conhecida por não produzir alianças no meio evangélico. É sempre muito sectária e muito criticada. E a gente vai vendo essa necessidade de o Marcelo Crivella se posicionar contrário a algumas questões. Na questão do Queermuseum, em 2017, ele faz questão de dizer que a exposição não iria para o Rio de Janeiro. Ele começa a fazer questão de tomar partido sobre certas moralidades, coisa que não é muito o forte da Universal. Talvez a gente possa dizer que a Universal, politicamente, tem um discurso muito mais liberal, mas essa necessidade de transitar mais pelo Executivo fez com que, de alguma maneira, as pautas defendidas pela igreja fossem sendo moldadas.