Embora seja mecanismo avançado no combate à violência contra a mulher, pontos centrais do texto não se concretizaram, segundo especialistas
(O Globo, 07/08/2019 – acesse no site de origem)
Há exatos 13 anos, quando sancionada, a Lei Maria da Penha foi celebrada como um dispositivo avançado para coibir a violência contra a mulher. Antes dela, afinal, o tema era tratado como “crime de menor potencial ofensivo”, sob a lei 9.099 de 1995, segundo a qual, por exemplo, a própria mulher deveria se encarregar de levar ao seu agressor a intimação para que ele comparecesse à delegacia, e as penas acabavam reduzidas ao pagamento de cestas básicas.
— A Maria da Penha é um divisor de águas. É como se a violência contra a mulher fosse invisível. A lei surge, traz o problema à luz e se dispõe a fazer esse enfrentamento — defende Borges. — Mas, de fato, o cumprimento nunca se deu de forma plena.
Engrossa o coro Luanna Tomaz, vice-diretora da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Pará (UFPA) e da Clínica de Atenção à Violência na mesma instituição. Para ela, “muito do que foi proposto na lei não foi endereçado”:
— A lei é um mecanismo avançado, amplo, que trata desde ações educativas para o combate até a capacitação de profissionais para lidarem com o tema. Passados 13 anos, vemos que muito não se realizou.
A juíza Renata Gil, presidente da Associação dos Magistrados do Estado do Rio de Janeiro (Amaerj), concorda: “O grande desafio da lei é a questão da efetividade do que está disposto no texto”.
— O aumento dos números de casos de violência contra a mulher e de feminicídio são prova de que a lei não está funcionando em sua totalidade. Não acho que o problema seja omissão. O que há é escolha de caminhos que não prezam pela efetividade da lei. Precisamos de mais ação e menos programação — afirma a juíza.
Veja três pontos da lei considerados essenciais pelas especialistas e que, segundo elas, estão distantes de serem cumpridos.
Preparo dos policiais
Diz um tópico do capítulo “Das Medidas integradas de prevenção” que a política pública para coibir a violência doméstica deve ter entre as diretrizes: “a capacitação permanente das Polícias Civil e Militar, da Guarda Municipal, do Corpo de Bombeiros e dos profissionais pertencentes aos órgãos quanto às questões de gênero e de raça ou etnia”.
— A gente ainda encontra muitos relatos de mulheres que procuram as delegacias da mulher e não encontram atendimento adequado. Se a delegacia especializada tem esse problema, imagina as outras? — questiona Daniela Borges. — Nós sabemos que, para a mulher, já é muito difícil chegar até a delegacia, e não raro ela encontra policiais destreinados. E assim muitas acabam por desistir de registrar a queixa.
Atendimento 24 horas
A lei, lembra a advogada, prega ainda que a mulher “em situação de violência doméstica e familiar” tem direito a “atendimento policial e pericial especializado, ininterrupto e prestado por servidores — preferencialmente do sexo feminino — previamente capacitados”.
No entanto, segundo Daniela Borges, das quase 500 delegacias da mulher no país, apenas 21 oferecem o serviço 24 horas.
— Ora, se a lei fala em atendimento ininterrupto, a falta das delegacias funcionando 24 horas é um descumprimento da lei — afirma. — E ainda é preciso lembrar que a a maior parte dos casos da violência de gênero ocorre à noite.
Varas criminais especiais
No artigo 33 da Lei Maria da Penha, está prevista a criação de Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher e, enquanto estes seriam criados, “as varas criminais acumularão as competências cível e criminal para conhecer e julgar as causas decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a mulher”.
Tais varas, porém, não existem, afirma Luanna Tomaz.
— A ideia era atender essas mulheres num lugar só, porque não fazia e não faz sentido as mulheres terem de peregrinar de vara em vara, numa para tratar da violência, em outra para se divorciar ou para tratar da guarda dos filhos. A lei surgiu apresentando a proposta de uma vara que pudesse cuidar de tudo. Mas isso nunca aconteceu na prática — lamenta a professora de Direito da UFPA.