Desenvolvedora americana denunciou ‘lenda’ do ramo nesta semana e deu início à mobilização que já inclui brasileiras
(Época, 30/08/2019 – acesse no site de origem)
Após abalar a indústria cinematográfica e atingir figuras até então intocáveis do ramo em 2017, a exposição de episódios de estupro, assédio e agressão sexual relatados por mulheres – no que ganhou o mundo na forma do #MeToo – acaba de encontrar um ramo que supera o lucro dos cinemas e, ainda que mais recente, já tem casos emblemáticos de misoginia: os games. Com histórias relatadas que envolvem violência sexual e psicológica, além de difamação profissional, depressão e até tentativas de suicídio, foram necessárias menos de 24h para que um longo relato pessoal, feito pela desenvolvedora americana Nathalie Lawhead na segunda-feira, viralizasse nas redes sociais e encorajasse outras mulheres a fazerem denúncias similares, o que já atingiu ao menos três renomados profissionais da indústria. A atitude, que começou sem qualquer pretensão organizada, já ganha contornos de mobilização, disponibiliza redes de apoio às mulheres que denunciam as agressões e encontra ressonância na opinião de brasileiras ligadas aos games.
Desenvolvedora independente de jogos para computador, como Tetrageddon e Everything is Going to Be OK , Lawhead usou seu site pessoal para relatar episódios que teriam acontecido no fim dos anos 2000 envolvendo o premiado compositor Jeremy Soule, por trás das trilhas sonoras de jogos eletrônicos da célebre série The Elder Scrolls . Com prints de e-mails e conversas, além de uma enorme narrativa que dá conta de alguns anos antes e após o ocorrido, Lawhead afirmou ter sido estuprada por Soule em Vancouver enquanto trabalhava no projeto de um game para uma empresa – ambos os quais não são especificados.
Dadas suas negativas em permanecer com o compositor, ela afirmou ter sofrido difamação profissional por parte dele na ocasião, o que teria custado seu emprego e o que voltaria a acontecer mais tarde, quando foi contratada em outro projeto. Nos relatos, a desenvolvedora não só dá conta das investidas e comentários atribuídos a Soule, mas também aponta uma série de outros abusos que sofreu enquanto mulher na indústria de games, como ter sua opinião diminuída sistematicamente e passar por grandes dificuldades em receber pagamentos pelo trabalho já entregue.
“Depois de passar por isso, eu estava fisicamente e emocionalmente devastada. Me custou muita coragem para jogar videogames outra vez. (…) Eu pensei que toda a indústria dos games era assim e não consegui pensar em todas as mulheres e artistas que poderiam ter passado pelo mesmo. Eu acreditei que isso era normal”, diz ela no texto, que ainda aponta um período de depressão e ao menos uma tentativa de suicídio até investir em jogos autorais e ganhar o prêmio Indiecade por Tetrageddonem 2015.
“Eu não quero que nenhuma mulher seja machucada por ele nunca mais”, disse Lawhead no tuíte em que anunciou os relatos pela primeira vez, motivo pelo qual dizia estar expondo esses acontecimentos, mesmo após mais de uma década. Ao “Kotaku”, site americano especializado em games, Soule negou as acusações na quarta-feira: “Essas alegações de 11 anos atrás são falsas. Estou chocado e triste que essas denúncias ultrajantes tenham sido feitas”, disse o compositor, que também foi acusado de violência sexual pela vocalista Aeralie Brighton.
A postagem atraiu centenas de pessoas dizendo acreditar em Lawhead e prezando a coragem de se expor, o que incentivou outras mulheres a fazer o mesmo, como Zoë Quinn na terça-feira. A desenvolvedora americana já tem histórico quando o assunto é assédio nos games, uma vez que, em 2014, foi o ponto central do caso mais famoso de misoginia nesse ramo, episódio que ficou conhecido por GamerGate — nele, acusações infundadas de que Quinn tivera um game seu favorecido pela crítica especializada após se relacionar com um jornalista da área motivaram uma campanha de difamação e perseguição contra ela em recantos obscuros da internet.
Após o relato de Lawhead, Quinn usou seu perfil no Twitter para se solidarizar com a colega e fazer sua própria denúncia de violência sexual, dessa vez contra o canadense Alec Holowka, conhecido pelos games Aquaria e Night in the Woods . Segundo ela, Holowka a atraiu até Winnipeg, no Canadá, com a promessa de que formariam uma desenvolvedora com outros amigos, o que não acontecera.
Obrigada a passar mais tempo no apartamento dele do que imaginava, lá os episódios de violência teriam acontecido, e mesmo após os dois terem se separado, a desenvolvedora teria sido alvo de difamação profissional, segundo ela. Tanto os casos de Quinn quanto Lawhead teriam acontecido quando as duas começavam as carreiras, fato que teria sido utilizado para tirar vantagem de ambas, elas dizem. Após o relato de Quinn, a equipe responsável por Night in the Woods decidiu cortar relações com Holowka na quarta-feira.
A adesão de Quinn, já famosa nas redes sociais a partir do GamerGate e da discussão sobre preconceito e toxicidade entre fãs e desenvolvedores de games, fez com que a mobilização crescesse ainda mais. Não demorou até que Adelaide Gardner, também na terça-feira, acusasse o desenvolvedor Luc Shelton, que trabalhou em produções milionárias como a série Gears of War , de violência sexual.
De acordo com Gardner, que produz conteúdo voltado aos fãs de RPG (role-playing game , ou jogos de tabuleiro com interpretação de personagens), Shelton teria chegado a algemá-la em seu apartamento há dois anos. Também o desenvolvedor Alexis Kennedy, da Failbetter Games, conhecido por jogos como Sunless Sea , foi acusado de comportamento abusivo pela roteirista de games Olivia Wood mais tarde – o que ele nega -, e a lista vem crescendo desde então.
Nesses relatos, mulheres se disseram traumatizadas pelas experiências e questionaram a forma como a indústria as trata, como destacou Lawhead em seu depoimento: “a maioria das vítimas não sobrevive a isso. Elas piram. Elas abandonam a indústria. Elas cometem suicídio, ganham problemas de alimentação e desenvolvem ódio por si mesmas até um ponto em que não funcionam mais. Tenho sorte de ter uma família que cuidou de mim quando eu estava estilhaçada.”
REPERCUSSÃO BRASILEIRA
Apesar da indústria de games no Brasil não ser tão grande quanto a americana – o que não a impede de vir crescendo rapidamente nos últimos anos, sobretudo no cenário de jogos independentes –, preconceito, piadinhas e episódios de assédios com mulheres também são comuns no cenário nacional, segundo a ilustradora e desenvolvedora Carolina Porfírio, da Kuupu, responsável por jogos como Exodemon . Ela ressalta que o silêncio das mulheres atingidas costuma ser regra mesmo na inédita mobilização atual, uma vez que é comum o receio de sofrerem retaliação em suas carreiras: “Não é porque os assédios estão vindo à tona agora que devemos acreditar que são novidade, mas eles sempre aconteceram, e é impressionante sabermos que podem ser pessoas próximas, que fazem parte do nosso círculo. O problema é que existe esse receio de falar sobre, já que há o medo de ficar marcada como ‘a menina que acusou fulano’ e sofrer retaliação, por isso não podemos culpar aquelas que decidem não falar”.
Segundo Porfírio, por uma série de vícios e preconceitos comuns aos videogames desde sua popularização nos anos 80, como o fato de “serem feitos para homens”, as atitudes atingem todas as mulheres na área, sejam trabalhadoras, streamers (que fazem transmissões ao vivo jogando) ou jogadoras ocasionais. Ainda que considere trabalhar em uma “bolha” – a Kuupo é formada por Porfírio e o marido -, o que garante um companheirismo diferente das outras meninas iniciando suas carreiras em empresas maiores, ela afirma que os episódios de preconceito são recorrentes: “Já ouvi que games não eram para mim, e até acharam que eu estava mentindo sobre expor um jogo meu num evento, como se não acreditassem que uma mulher poderia tê-lo feito.”
Ela acredita que a recente mobilização abre um novo capítulo na indústria, uma vez que pretensos assediadores “pensarão duas vezes” e mulheres terão mais força para se proteger e compartilhar suas histórias. Mas isso não quer dizer que o público reaja da mesma forma: “Quanto ao público, eu gostaria de ser otimista e dizer que vão mudar suas opiniões, mas não acho que isso vai mudar logo”. O remédio seriam mais mulheres na indústria, a fim de “ter elas junto nos seus jogos e escrever com elas, não só sobre elas”. Ainda segundo Porfírio, a mobilização também já teve impacto no Brasil, uma vez que mulheres do ramo começaram a trocar relatos entre si, oferecendo proteção psicológica e até, em alguns casos, vindo a público.
A estudante de Medicina Nathália Fernandes, de 24 anos, não é desenvolvedora de games, mas é uma jogadora renomada de Pokémon TCG , vencedora de campeonatos regionais e que compete ao menos duas vezes por ano em torneios internacionais. Incentivada pelos relatos no exterior, ela usou seu perfil do Twitter na segunda-feira para relatar um caso de violência sexual que contou ter ocorrido no campeonato mundial do jogo, realizado em Washington há duas semanas, envolvendo um outro jogador brasileiro, que considerava amigo até então. Fernandes afirmou ter sido vítima de comentários inapropriados durante toda a viagem e de investidas enquanto estava dormindo, uma vez que compartilhavam o quarto.
“Recebi muito apoio de mulheres que me disseram ter sofrido coisas parecidas nesse cenário”, disse ela, que afirma sempre ter sofrido preconceito desde quando começou sua história no jogo, há oito anos, até hoje, já com renome. “No meu primeiro torneio nacional, eu tive uma partida com um homem famoso no jogo e que, antes de começarmos, comentou com um amigo que seria ‘muito fácil’ ganhar de mim, isso tudo na minha frente. No caso, fui eu quem ganhou, e ele saiu furioso, porque considerava uma vergonha ter perdido para uma mulher”, conta ela. A repercussão da postagem, segundo Fernandes, trouxe apoio da empresa que gere o jogo, mas ela espera que esse episódio desperte um “entendimento” que atinja toda a indústria, incluindo desenvolvedores, jogadores e streamers – estas, aliás, ela considera as que mais costumam sofrer agressões verbais, que vêm durante as lives.
“É importante mostrar que estamos em todos os lugares. É preciso ter mais mulheres nos jogos e as empresas têm que incentivar essa participação. A maioria desses casos são feitos por pessoas com alguma influencia no ramo, então que deem atenção a isso”, afirma. Como continuação da sua vida em Pokémon TCG , ela reproduz um sentimento externado por várias outras mulheres que relataram abusos desde a postagem de Lawhead: o de não ficarem marcadas por isso, mas serem lembradas pelo seu talento. “Não quero ser reconhecida como a menina que foi abusada”, diz ela.
Por Victor Calcagno